Introdução

A crise provocada pela pandemia da COVID-19 é um convite incessante à reflexão em muitas dimensões. Neste texto, quero convidá-lo a refletir esse fenômeno a partir da dimensão religiosa. A experiência de fé, na sua autenticidade, qual contribuição pode dar nesse cenário desolador? O que as religiões tem a oferecer à humanidade neste grave tempo de instabilidade, angústia, medo, tristeza e ansiedade?

Devido à diversidade das sensibilidades religiosas, não encontramos uma única postura e nem, objetivamente, uma solução para o problema. Estamos diante de um fenômeno mundial em que todos os recursos técnicos ainda são insuficientes. A universalidade das vítimas, em gênero, cor, cultura, religiões e condição econômica, demonstra que ninguém tem uma proposta técnica para a resolução do referido mal.

Todavia, é justo que nos questionemos sobre aquilo que, de positivo e limitante, encontramos nas religiões diante dos dramas humanos. Cada religião traz consigo um sistema de crenças, valores, ritos, virtudes, atitudes e metas para os fiéis. Visto que a religião concebe o ser humano como um ser “metafísico”, não se fixa na ciência, mas ao mesmo tempo deve respeitar sua autonomia e interpretar seus dados à luz da fé.

 

  1. Religião e sofrimento

A primeira questão diante da qual a humanidade se encontra atualmente é a experiência do sofrimento e da limitação dos seus recursos (físicos, científicos, econômicos etc). As religiões abraçam a totalidade do ser humano e dão sentido para tudo o que ele é, sente, pensa, adquire, busca, padece e o que acontece neste mundo. A religião não cria um mundo à parte, mas oferece-lhe um sentido, uma leitura, uma interpretação.

Nos livros sagrados, as múltiplas visões e experiências de Deus, não constituem uma “vacina técnica” para o sofrimento humano. Apesar das mais variadas e profundas experiências de fé todos adoecem, sofrem e morrem. Nenhuma religião pode reivindicar o direito de ter o “elixir da vida perpétua” e sem sofrimento neste mundo. Cada religião tem sua forma de lidar com o sofrimento, o erro, a culpa, a doença e a morte.

Sobre o sofrimento humano paira um mistério! Tanto o judaísmo, hinduísmo, budismo, islamismo e no cristianismo, com seus respectivos livros sagrados, encontramos abundantes referências ao ser humano com seus dons, potencialidades e limitações. A experiência religiosa traz consigo uma antropologia, ou seja, uma visão do ser humano.

Para as religiões em geral, há uma relação muito íntima entre experiência de fé, ética, bondade, paz, sacrifício, santidade, sofrimento, morte, vida, plenitude. Isso nos mostra o quanto é importante a religião para uma sociedade se ela for fiel aos seus princípios éticos fundamentais.

 

  1. Algumas respostas e muito mistério

Para o hinduísmo o sofrimento é uma realidade congênita da condição humano, mas pode ser suportado através da virtude, do esforço para se chegar à excelência. É preciso a sábia gestão das nossas afeições e sentimentos. O sofrimento deve ser suportado com paciência! Quem permanece sereno e imperturbável tanto no prazer quanto no sofrimento, atinge a imortalidade (cf. Bhagavad Gita, Canto II, Revelação da Verdade, 14-15).

No budismo são fortíssimas as referências ao sofrimento. O mundo está marcado por ele que abraça a totalidade das fases do desenvolvimento humano. O sofrimento pode ter muitas causas tais como os desejos desordenados, a ignorância, a obstinação, o egoísmo, as ilusões, as paixões… A superação da dor e do sofrimento não acontece magicamente, mas podem ser tratadas mediante a sua correta percepção, bons pensamentos, a boa palavra, a autodisciplina, virtudes e etapas de sabedoria… Esse é o caminho do Nirvana, o pleno estado de paz e tranquilidade.

Para o Islamismo o ser humano é fraco e padece pelos infortúnios da vida (cf. Alcorão 10:12); apesar de causas humanas, provocados pelas fraquezas e pecado, nele há também um mistério permitido por Deus, como aconteceu com Jó em que o sofrimento tem sua origem nas investidas de Satanás (cf. Alcorão, 38:40).

Na Bíblia, envolvendo a tradição judaica e cristã, o sofrimento é consequência da criaturalidade humana, marcada pela limitação (pó!); mas Deus acompanha o ser humano e no sofrimento se faz presente e o liberta: «Eu vi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu clamor contra seus opressores, e conheço os seus sofrimentos” (Ex 3,7-8). Ninguém é poupado do sofrimento: padecem pequenos e grandes, pobres e ricos, cultos e iletrados, culpado e inocentes, também a natureza sofre (cf. Rm 8,19).

Se por um lado o sofrimento acusa a condição de vulnerabilidade humana, por outro, a fé inspira-lhe confiança pois “Deus é fiel e não permitirá que sejam tentados acima das forças que vocês têm. Mas, junto com a tentação, ele dará a vocês os meios de sair dela e a força para suportá-la” (1Cor 10,13). Enfim, “os sofrimentos do momento presente não se comparam com a glória futura que deverá ser revelada em nós” (Rm 8,18).

Quanto às causas do sofrimento, nem tudo se explica, nem tudo depende do mau uso da liberdade; é uma questão imersa em grande mistério; e onde está o amor ali também está o sofrimento. Mas também o sofrimento é passagem para glória (cf. Is 52,17; Fl 2,6-11). 

Apesar das respostas insuficientes, uma coisa é certa: a fé não é um antídoto para o sofrimento e nem para a dor. Mas pode oferecer ao sofredor a possibilidade de um significado. Visto que Deus é Pai amoroso e que só deseja o bem dos seus filhos, também está pronto para educá-los e isso pode vir também com o sofrimento: “Meu filho, não desprezes a educação do Senhor…; pois o Senhor corrige a quem ele ama e castiga a quem aceita como filho. É para a vossa educação que sofreis, e é como filhos que Deus vos trata. Pois qual é o filho a quem o pai não corrige” (Hb 12,5-7).

 

  1. O lamentável charlatanismo

Uma postura profundamente errônea da religião seria aquela de tentar, a todo custo, dar uma resposta técnica ao sofrimento ou prometer o fim do mesmo a partir de exigências preceituais. A COVID-19 está ceifando vidas de fiéis e líderes religiosos de todas as religiões. Esse drama está desmascarando o charlatanismo daqueles que, com seus cultos, prometiam a cura de toda espécie de doenças e males. E agora, onde estão eles?

O profeta Jeremias, muito sensível à moral religiosa, denunciou no seu tempo os falsos profetas enganadores do povo que faziam da religião fonte de fantasias. «É mentira o que esses profetas falam em meu nome (…). Eles anunciam a vocês visões mentirosas, oráculos vazios e fantasias da imaginação deles” (Jr 14,14). Eles vendiam ilusões com palavras mentirosas que não traziam nenhuma solução para os reias problemas do povo (cf. Jr 7,6-8).

Também os apóstolos enfrentaram falsos mestres promotores de heresias, doutrinas dissolutas, vendas de ilusões por amor ao dinheiro fazendo das pessoas objetos de negócios (cf. 2Cor 11,13-15; 2Pd 2,1-3). Em geral, tais líderes tem um discurso fundamentalista e negam o dinamismo próprio da natureza e da ciência. Privilegiam os seus interesses pessoais.

O papel da religião é aquele de dar sentido para a realidade, despertar para as virtudes, fomentar solidariedade, contribuir para a saúde mental, favorecer a resiliência, a serenidade, apresentar parâmetros éticos, estimular a esperança e um olhar que transcenda a realidade.

PARA REFLEXÃO PESSOAL:

  1. Quais são as possíveis respostas ao sofrimento humano?
  2. Como você vê o charlatanismo religioso diante do sofrimento?
  3. Qual é a verdadeira contribuição da religião em relação à experiência do sofrimento?

Por Dom ANTÔNIO DE ASSIS RIBEIRO, SDB

Bispo Auxiliar de Belém - PA e Secretário Regional da CNBB Norte 2