Por Dom Vital Corbellini

Bispo de Marabá – PA.

            Santo Ireneu de Lyon será o novo doutor da Igreja, pelo Papa Francisco. Ele é percebido como doutor da unidade, na qual ele promoveu a paz entre as Igrejas e com o bispo de Roma, o sucessor de Pedro. Ele foi um dos grandes teólogos dos séculos II e III. Ele nasceu em Esmirna e por razões desconhecidas, veio até Lyon, na Gália. Ele sucedeu ao Bispo Potino, martirizado no final do século II em Lyon[1].

A palavra doutor vem do latim: doctor-doctoris, cujo significado é mestre, pessoa que ensina aos outras coisas importantes sobre a vida, a vida cristã. É um título que a Igreja através do Papa atribui aos escritores ilustres por santidade de vida, pelo testemunho de seu amor a Deus, ao próximo como a si mesmo, sobretudo pela sua ciência nas coisas sagradas[2] e pela ortodoxia, pela pureza de fé, crença certa[3].

 

Discípulo de São Policarpo.

No Livro História Eclesiástica Eusébio de Cesaréia, bispo do século IV falou que Ireneu foi um homem santo, modelo de diligente exatidão[4], portanto um homem que seguia a tradição evangélica e apostólica. A uma carta dirigida ao sacerdote Florino de Roma, Ireneu diz que esteve ligado a São Policarpo, bispo e mártir do século I, em Esmirna, desde a sua infância e juventude, sendo seu discípulo. Por sua vez São Policarpo foi seguidor do apóstolo São João.

Eusébio transcreveu no seu livro o depoimento de Santo Ireneu, tão expressivo e tão bonito, na sua relação com São Policarpo: “Efetivamente, os conhecimentos na infância progridem com a alma e com ela se identificam, de sorte que posso dizer até o lugar onde se sentava o bem-aventurado Policarpo para falar, como ele entrava e saia, seu modo de viver, seu aspecto físico, as prelações à multidão, como referia suas relações com João e com os outros que haviam visto o Senhor, como relembrava suas palavras e o que ouvira dizer a respeito do Senhor, seus milagres, suas doutrinas: como Policarpo, após ter recebido tudo isso de testemunhas oculares da vida do Verbo (1Jo 1,1-2), anunciava conforme as Escrituras”[5]. Com Santo Ireneu havia o ressoado apostólico, que vinha do Apóstolo São João, São Policarpo e com o bispo de Lyon, tudo isso era muito importante para a vida da Igreja do século II.

Ireneu, homem da paz.

Ainda no Livro: História Eclesiástica, Eusébio de Cesaréia o descreveu como homem da paz. Ele teve que intervir na questão na celebração da Páscoa, porque enquanto algumas igrejas a celebravam em unidade com a páscoa dos judeus, outras, sobretudo Roma, a celebravam no domingo seguinte. Santo Irineu interveio junto ao bispo de Roma, Vitor para que ele não fizesse o afastamento total das Igrejas da Ásia Menor, hoje, seria Turquia, porque elas seguiam São Policarpo, que por sua vez este bispo seguia o apóstolo São João, onde celebravam a páscoa cristã, no mesmo dia da páscoa judaica, no décimo quarto do mês de Nisan[6].

A voz e a atuação de Ireneu foram muito importantes na controvérsia pascal para o restabelecimento da paz entre as igrejas da Ásia Menor com Roma. Eusébio de Cesaréia diz a respeito do bispo de Lyon: “E Ireneu bem merecia tal nome, pois era pacificador pelo nome e a conduta, visto que exortava e servia de intermediário, em prol da paz entre as Igrejas. Entretinha-se epistolarmente não apenas Vítor, mas ainda com grande número de vários chefes de Igrejas, sobre questões levantadas entre eles”[7]. Após o Concílio de Nicéia (325) a Páscoa será celebrada no domingo seguinte à Páscoa dos judeus.

As suas obras.

Santo Ireneu escreveu muitas obras, mas somente algumas chegaram até os nossos dias. A primeira foi Adversus haereses, “Contra as Heresias”, que está em português, ele deteve-se na compreensão da heresia gnóstica, colocando também os principais autores, como Simão Mago, Basílides, Marcião entre outros[8] e também desmascarou o sistema gnóstico através da doutrina evangélica e apostólica que vinha dos sucessores dos apóstolos, dos apóstolos e de Jesus Cristo.

Outra obra dele é: Demonstração da pregação apostólica, também está em português, colocou a regra da fé, como ponto importante na vida eclesial e dos seguidores do Senhor. O autor tratou do mistério de Deus Uno e Trino, da criação, da caída do ser humano, da encarnação e da redenção. Ele tinha presente nesta obra às profecias até Jesus Cristo, o Filho de Davi e o Messias[9].

Ele escreveu outras obras, mas chegaram até nós em fragmentos ou mesmo os títulos[10]. Ele também elaborou muitas cartas e as enviava para as Igrejas vizinhas para confirmá-las na fé cristã, ou mesmo para advertir certos irmãos para seguir a verdade em Jesus Cristo[11].

Pensamento trinitário.

Santo Ireneu teve presente o Deus Uno e Trino nas suas considerações contra os hereges, sobretudo os gnósticos, os ebionitas, porque eles afirmavam o mistério trinitário como seres espirituais, mas não como pessoas divinas. Os ebionitas não admitiam que o Espírito Santo sobreveio em Maria e o poder do Altíssimo a cobriu com sua sombra e quem dela nasceu era o Filho de Deus (cfr. Lc 1,35), o Pai de todas as coisas[12].

O Bispo de Lyon colocou a expressão as ‘mãos do Pai’, que seriam o Filho e o Espírito Santo em relação à Trindade: “Adão nunca fugiu das mãos de Deus às quais o Pai dizia: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança (Gn 1,26)´. E eis por que no fim, ‘não pela vontade da carne nem pela vontade do homem, mas pela vontade do Pai’ (Jo 1,13), as suas mãos tornaram o homem vivente, de forma que Adão se tornasse à imagem e semelhança de Deus”[13]. Ele realçou que o mistério do Deus Uno e Trino é eterno, existindo antes da criação do mundo.

A recapitulação em Cristo.

Santo Ireneu também desenvolveu a doutrina cristológica da recapitulação dos seres humanos e das coisas em Cristo Jesus. A afirmação é de São Paulo: “Ele nos fez conhecer o mistério de sua vontade, segundo o desígnio benevolente que formou desde sempre em Cristo, para realizá-lo na plenitude dos tempos: recapitular tudo em Cristo, tudo o que existe no céu e na terra” (Ef 1, 9-10). O bispo de Lyon lhe deu um desenvolvimento notável, pois para ele, a recapitulação é uma retomada no Cristo Jesus da totalidade das coisas e dos seres humanos desde a origem. Deus restaurou as coisas em Cristo Jesus[14]. Como o Filho existia desde sempre junto do Pai, pela encarnação, recapitulou toda a vida humana, dando em síntese, a salvação, de modo que o tinha sido perdido em Adão, a imagem e semelhança de Deus, tudo é recuperado em Jesus Cristo[15]. Nesta doutrina da recapitulação Jesus Cristo é o novo Adão, na qual a criação inteira é totalmente renovada, recapitulada.

Ele também queria confrontar os discípulos de Marcião, gnósticos, que consideraram a existência de diferenças da atuação do Senhor do Antigo e do Novo Testamento. Santo Ireneu disse que o Deus do Antigo Testamento é o mesmo do Novo Testamento. O Senhor Jesus foi predito pelos profetas e a grande novidade que ele trouxe foi a renovação, a vivificação do ser humano e das coisas[16]. O Senhor recapitulou todas as coisas nele para levá-las à vida, a forma como o Senhor Deus as tinha criado.

O pensamento eclesial.

Diante dos gnósticos que falavam de demiurgos, seres espirituais, Ireneu teve que afirmar Cristo como pessoa e que ele recapitulou todas as coisas, o ser humano, e também a Igreja. Desta forma de invisível que era tornou-se visível, de incompreensível, inteligível, de impassível, passível, de Verbo, homem. Ao assumir a primazia de tudo, tornou-se também cabeça da Igreja para atrair a si todas as coisas no tempo oportuno[17].

Os gnósticos afirmavam que eles tinham a verdadeira tradição. Assim Ireneu teve que dizer que a tradição veio do Senhor Jesus, passando pelos apóstolos até chegar aos dias da vida de Santo Ireneu. Por isso ele falou de sucessão de todas as igrejas, havendo nas mesmas na sua origem, algum apóstolo fundador ou seu discípulo. Como seria muito longa a lista da sucessão apostólica ele se limitou à maior e mais antiga, conhecida por todos, à Igreja fundada e constituída em Roma, pelos dois gloriosos apóstolos, Pedro e Paulo[18]. Assim a Igreja de Roma tinha a sua primazia sobre todas as igrejas, pelo fato de nelas terem sofrido o martírio de São Pedro e de São Paulo. O bispo de Roma tinha primazia sobre as outras Igrejas.

Maria, a nova Eva.

Santo Ireneu também desenvolveu o pensamento mariológico que Maria é a nova Eva. Enquanto Maria foi a mulher obediente à palavra do Senhor, em contraste, Eva desobedeceu à ordem do Senhor[19]. Ele falou de Maria, como a advogada de Eva: “Uma deixou-se seduzir de modo a desobedecer a Deus, a outra se deixou persuadir a obedecer a Deus, para que, da virgem Eva, a Virgem Maria se tornasse advogada”[20].

A salvação.

Santo Ireneu de Lyon desenvolveu a doutrina soteriológica, da salvação do ser humano, contra a doutrina de alguns gnósticos que diziam que o Salvador foi alheio aos sofrimentos da vida humana. Cristo Jesus assumiu toda a realidade humana, dando-lhe a salvação, a vida eterna. O Filho de Deus se tornou Filho do Homem, para que o ser humano, unindo-se ao Verbo de Deus, se tornasse filho de Deus. Nunca o ser humano poderia obter a incorrupção e a imortalidade a não ser pela incorrupção e imortalidade do Verbo de Deus que se fez carne[21].

O bispo de Lyon teve presentes também na doutrina salvífica que a glória de Deus é o ser humano vivente, para sempre junto dele: “Deus é a glória do homem e o homem é o receptáculo da obra, de toda a sabedoria e do poder de Deus”[22].

Santo Ireneu de Lyon é o novo doutor da Igreja, reconhecimento merecido por ser um dos teólogos da Igreja nos séculos II e III e por ter vivido o seguimento a Jesus Cristo, ter desenvolvido a doutrina trinitária, cristológica, eclesiologia e salvífica influenciando as visões posteriores dos santos padres.

[1] Cfr. Johannes Quasten. Patrologia, I primi due secoli (II-III). Marietti, S. Maria degli Angeli – Assisi (PG), 1992, pg. 256.

[2] Cfr. Dottore. In: Il vocabolario treccani, Il Conciso. Milano, Trento, 1998, pg. 496.

[3] Cfr. Ortodossia. In: Idem, pg. 1079.

[4] Cfr. Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica, V, 20,3. Paulus, SP, 2000, pg. 264.

[5] Idem, V, 20,6, pgs. 264-265.

[6] Cfr. Idem, V, 20, 17, pg. 272.

[7] Idem, V, 24, 18, pg. 272.

[8] Cfr. Johannes Quasten. Patrologia, I primi due secoli (II-III), pg. 257.

[9] Cfr. Idem, pg. 261.

[10] Cfr. Idem, pg. 262.

[11] Cfr. Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica, V, 20,8.

[12] Cfr. Ireneu de Lião, V, 1,3, Paulus, SP 1995, pg. 520.

[13]Ibidem, pg. 521.

[14] Cfr. Johannes Quasten. Patrologia, I primi due secoli (II-III), pg. 264.

[15] Cfr. Ireneu de Lião, III,18,1, pgs. 328-329.

[16] Idem, IV, 34,1, pg. 481.

[17] Cfr. Idem, III,16,6, pg. 321.

[18] Cfr. Idem, III,3,2, pgs. 249-250.

[19] Cfr. Idem, III,22,4, pg. 351.

[20] Idem, V,19,1, pg. 569.

[21] Cfr. Ibidem, III, 19, 1, pg. 336.

[22] Idem, III, 20,2, pg. 340.