por Conselho Indigenista Missionário / Regional Norte 2
“Conhecemos a terra, os rios, os lagos, a medicina tradicional, os animais. Por isso, nem o governo, nem empresas, nem agronegócio, nem garimpo, nem madeireiro: NINGUÉM vai nos derrubar!”. A fala do cacique kayapó, Kapran Poi, resumiu bem o espírito do ‘2.º Seminário da Terra’, realizado pelo Conselho Indigenista Missionário, Regional Norte 2, de 15 a 19 de julho, no Centro de Formação Betânia, da Diocese do Xingu Altamira, em Altamira (PA).
O Centro Betânia, que entrou para a história do movimento indígena por ter concentrado as mobilizações contra os projetos da UHE Kararaô e depois Belo Monte, recebeu cerca de 120 representantes dos povos indígenas Xipaia, Arara, Curuaia, Xikrin, Kararao, Juruna, Yudja Juruna, Arapium, Tapajó, Tupinambá, Munduruku, Kumaruara, Guarani do Pará, Suruí, Amanaie, Tembé, Kayapó, Karipuna do Amapá, Galibi Marworno, Karipuna de Rondônia, Ka’apor, Huni’kui, Kaingang, Guarani do Mato Grosso do Sul e Pankararu, provenientes dos biomas Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa e Pantanal, além de missionários de vários outros Regionais, para discutir sobre os temas “Mudanças Climáticas e seus Impactos; Mercado de Carbono e as Falsas Soluções e Desafios para a COP 30”.
Antes de entrar nos temas propriamente ditos, foi feito uma análise de conjuntura nacional sobre Política Indigenista, apresentada pela Secretária Adjunta do Cimi, Ivanilda Torres Santos, demonstrando que os ataques aos Direitos Indígenas no âmbito dos três Poderes são fruto da influência do que se poderia chamar de “quarto Poder”, exercido pelos grandes conglomerados financeiros que buscam minar a proteção aos territórios dos Povos Tradicionais para ter acesso às riquezas do solo. Uma das provas mais claras dessa influência foi a promulgação, pelo Congresso Nacional, da Lei 14.701/23, após a derrota do Marco Temporal no STF, em dezembro de 2023. Esse fato foi o pretexto para que, em nome de uma suposta “pacificação” das disputas territoriais, o Ministro do Supremo, Gilmar Mendes, decidisse criar uma “Câmara Câmara de Conciliação”, em resposta à ação judicial da Apib, que pedia ao STF para declarar a inconstitucionalidade da Lei 14.701. Em pouco tempo, os antiindígenas conseguiram transformar a Câmara em instrumento dos seus interesses, e a Apib se retirou do grupo, denunciando as manipulações promovidas por este. O resultado: os processos de demarcação de terras indígenas estão paralisados, e ocupantes ilegais chegam a ser indenizados com valores milionários, às custas do orçamento público.
Amazônia em Jogo: Carbono e Desinformação
A região amazônica tem sido instrumentalizada para fins econômicos. Lindomar Padilha, do Cimi Acre, denunciou como o grande capital se apropria do discurso de sustentabilidade para promover a exploração. O mercado de carbono, vendido como solução para desmatamento e queimadas, é, na visão das lideranças, uma forma de mercantilizar a floresta, transformando-a em valor econômico para grandes empresas, enquanto os governos locais abrem caminho para madeireiras, mineradoras e monoculturas.
A criação da Amacro (iniciativa que visa integrar economicamente Amazonas, Acre e Rondônia) é um exemplo, carregando o nome de “sustentável”, mas reproduzindo velhas modalidades de exploração.
A Força da Resistência Indígena
Apesar das adversidades, a resistência dos povos indígenas é inegável. Lindomar Padilha ressaltou que a presença crescente de indígenas nas universidades e o uso de novas tecnologias são ferramentas importantes. No entanto, a verdadeira força reside na espiritualidade e identidade, que servem como “cimento” para manter os povos unidos em torno de seus direitos e de uma visão de mundo que transcende a lógica do lucro. Para Lindomar, resistência é questionar o discurso de desenvolvimento vendido pelo capital, considerando que este não se coaduna com os modos de vida dos povos tradicionais.
Crise Climática: Fogo, Fome e Falsas Soluções
Tarcísio Feitosa, da Forest and Finance, detalhou os impactos da crise climática, que atinge desproporcionalmente as populações mais pobres. A queima de combustíveis e a devastação da floresta para pastagens liberam carbono, alterando o clima e causando eventos extremos como secas severas e chuvas intensas. A dramática perda da produção de castanha em 2024, relatada por lideranças, é um exemplo direto de como as mudanças ambientais impactam diretamente a economia e o modo de vida indígena.
As COPs – Conferências do Clima da ONU, que deveriam ser fóruns de soluções, tornam-se cada vez mais dominadas por interesses mercadológicos, com forte lobby de petroleiras. A solução para a crise climática, como apontado, é fundamentalmente política e cultural.
Povos Isolados: Alvos Vulneráveis
Guenter “Chico” Loebens, da Equipe de Apoio aos Índios Isolados (Eapil), trouxe à tona a realidade dos povos isolados no Brasil, que sofrem com a violência e o contato forçado. Ele enfatizou que a escolha por viver isolado deve ser respeitada como um desejo de não ter projetos externos em seus territórios. Iniciativas de proteção florestal, muitas vezes lideradas pelos próprios povos indígenas, beneficiam diretamente esses grupos mais vulneráveis.
O Mercado de Carbono: Uma Nova Ameaça?
Um tema recorrente e motivo de grande preocupação foi o mercado de carbono. Lideranças como Ninawá Huni Kui (Acre) e Cacique Virgílio Amanayé denunciaram a fraude por trás desses projetos. Embora prometam “compensações” pela preservação, os valores pagos às comunidades são ínfimos em comparação com o lucro das grandes empresas, que chegam a comercializar os créditos centenas de vezes mais caros.
A implementação desses programas, muitas vezes com cláusulas confidenciais e contratos de longa duração (até mil anos em alguns casos, como relatado na Bolívia), pode limitar as atividades tradicionais de subsistência das comunidades e até mesmo exigir a remoção de populações de seus territórios. O Fundo Amazônia foi citado como um exemplo da aplicação do dinheiro dos créditos de carbono, mas o questionamento permanece: para quem, de fato, o benefício?
A Voz dos Protagonistas
As palavras das lideranças indígenas ecoaram a indignação e a determinação de seus povos:
Arukapé Suruí e Iayt Arara denunciaram a ineficiência da legislação e a falta de providências do governo para a desintrusão de invasores em suas terras, resultando em conflitos e destruição.
Cacique Kapranpoi Kayapó fez um apelo à união, convocando todos a defenderem os direitos indígenas no Congresso Nacional e a encararem a COP 30 como uma “segunda invasão”. Ele enfatizou a necessidade de uma Funai que realmente defenda os povos indígenas, com pessoas que os conheçam de fato.
Edmar Guarani expressou a gravidade do desequilíbrio planetário e a incerteza do futuro para seus filhos e netos diante de rios secos e a falta de caça e peixe em seus territórios.
Léo Munduruku e Hileia Poxo Munduruku alertaram para a contaminação por mercúrio e agrotóxicos, e a destruição de áreas por palmiteiros, respectivamente.
Itahu Kaapor ressaltou a importância da organização interna e do compartilhamento de experiências de luta contra as empresas de REDD, que continuam a assediar as comunidades.
Um Desafio para o Futuro
O Seminário da Terra 2025 deixou claro que a luta dos povos indígenas vai além da defesa de seus territórios. É uma luta pela vida, pela cultura, pela espiritualidade e por um modelo de desenvolvimento que respeite a natureza e os saberes ancestrais. Lindomar Padilha lançou um desafio aos defensores dos créditos de carbono: “usar os recursos bilionários das COPs para demarcar de vez todos os territórios indígenas; acabar com a lei 14.701; desintrusar todas as terras indígenas”. Somente a partir dessas condições, a discussão sobre a entrada do mercado de carbono nos territórios indígenas deveria ser aceita.
A sabedoria indígena, como pontuou Ninawá, é uma contribuição vital, mas a verdadeira solução para a crise atual exige uma mudança profunda na “alma da sociedade”, especialmente daqueles que detêm o poder político e econômico. A resistência dos povos indígenas não é apenas pela sua sobrevivência, mas pela sobrevivência do planeta.