por Dom Alberto Taveira Corrêa
Arcebispo Metropolitano de Belém
Há um texto na Sagrada Escritura extremamente provocante, podendo ser lido, meditado e praticado em nosso tempo e em nosso mundo, como descrição do modo de agir de Deus, “lento para a ira e rico em misericórdia e bondade” (Ex 34, 5-6). Trata-se do Livro de Jonas, com apenas quatro capítulos, mais do que uma profecia, uma pequena e rica história cheia de sabedoria, ambientada numa grande cidade, Nínive, na área mais ou menos correspondente a Mossul, cidade do Iraque praticamente destruída em recentes conflitos. Jonas é chamado por Deus para pregar àquela cidade e denunciar-lhe as injustiças praticadas pela população. O profeta se enche de medo e foge de suas responsabilidades. Mais tarde, e é o que nos atrai nesta reflexão, é chamado mais uma vez, pondo-se então a caminho da imensa cidade. Foi-lhe difícil entender a missão recebida, pelo que saiu pelas ruas anunciando a destruição. O mais simpático é que, das autoridades até as pessoas mais simples, aos olhos de Jonas, todos parecem entender errado! Ouviam ameaças de destruição e entenderam chamado à conversão!
Com muito humor, a Bíblia conta justamente o mau humor de Jonas, ao ver a misericórdia de Deus. “Foi por isso que eu corri, tentando fugir, pois eu sabia que és um Deus bondoso demais, sentimental, lerdo para ficar com raiva, de muita misericórdia e tolerante com a injustiça. O Senhor lhe respondeu: ‘Será que está correto ficares tão irritado?’ Jonas saiu da cidade e foi para o lado do nascente, onde fez um abrigo. Ali sentou-se à sombra, para ver o que ia acontecer à cidade. O Senhor Deus providenciou uma mamoneira que cresceu sobre Jonas, de forma a fazer sombra na sua cabeça, refrescando-a da raiva que sentia. Jonas ficou muito satisfeito com a mamoneira. Deus, porém, providenciou um verme que na madrugada seguinte atacou a mamoneira e ela secou. Após o nascer do sol, Deus mandou um vento oriental muito quente e o sol passou a castigar a cabeça de Jonas, que se sentiu mal. Tornou a pedir a morte, dizendo: ‘Prefiro morrer a ficar vivo!’ E Deus lhe disse: ‘Será que está correto tu ficares tão irritado por causa da mamoneira?’ Ele respondeu: ‘Está certo, sim, eu ficar com raiva e até pedir a morte!’ O Senhor lhe disse: ‘Estás com pena de uma mamoneira que não te deu trabalho, que não foste tu quem a fez crescer e que numa noite nasceu e numa noite morreu. Pois eu não terei pena de Nínive, esta enorme cidade onde moram mais de cento e vinte mil pessoas que não sabem distinguir entre a direita e a esquerda, além de tantos animais?’” (Cf. Jn 4,1-11) Impressionante a semelhança com muitas de nossas reações diante da vida, das pessoas, dos conflitos e até diante de Deus! (Cf. Artigo de Dom Alberto Taveira Corrêa, 21.01.2021)
Nossas cidades e o nosso mundo são muito mais provocantes em seus problemas e maldades do que o ambiente em que vivia Jonas. Há pouco tempo, houve uma pandemia, com um vírus invisível que deixou perplexa toda a humanidade, não sendo poucos os que o viam como um castigo do Céu. E estamos vendo uma nova onda, ainda que mais branda, da mesma enfermidade. Catástrofes naturais se repetem por toda parte, enchentes, terremotos, desastres de todo tipo, uma inegável perspectiva de graves mudanças no clima do planeta! Mais ainda a corrupção, a maldade, a perseguição, a irresponsabilidade dos detentores de poder, a revolta. O que dizer de duas guerras sangrentas em curso, além de outras menos faladas e consideradas? Tem razão, mais uma vez, o Papa Francisco, ao considerar que estamos numa difusa terceira guerra mundial!
E aqui está o mistério da iniquidade! Identifica-se ainda uma orquestração contra a Igreja e os valores cristãos, em nome do pluralismo, indiferentismo e relativismo, a defesa acirrada de grupos que se afirmam acima dos outros, sem aceitar que se possa ter pensamentos diferentes! E podemos ler a história, identificando ondas de verdadeira destruição do edifício dos valores autênticos, nas chamadas mudanças de época, como aquela em que nos encontramos. Mas debaixo das cinzas, continua acesa a brasa soprada pelo Espírito, fazendo-nos acreditar mais e de novo, para reconstruir tudo.
Jesus começou tudo com um pequeno grupo (Mc 1,14-20), proclamando a proximidade do Reino de Deus e chamando à conversão e a fé no Evangelho. Em seu ministério, houve etapas em que as multidões acorriam, houve tempos de crise e deserção dos que o seguiam, medo, dúvidas, insegurança. No entanto, para referir-nos ao Evangelho de São Marcos, proclamado em boa parte dos domingos do ano corrente, o Senhor foi arregimentando discípulos, sem excluir ninguém, dando a todos a oportunidade de participar da vida que lhes oferecia. E desde lá o caminho é o mesmo.
Quem quer ser seu discípulo chegará a proclamá-lo Filho de Deus, de pé, aos pés de sua Cruz, como o centurião que acompanhou a cena da paixão e morte do Senhor (Mc 15,39). Pedro, André, Tiago e João, assim como todos os outros chamados por Jesus eram homens limitados e frágeis. Há um verdadeiro tesouro numa palavra de São João Crisóstomo: “Por meio de homens ignorantes a cruz persuadiu a terra inteira. Não falava de coisas sem importância, mas de Deus, da verdadeira religião, do modo de viver o Evangelho e do futuro juízo. De incultos e ignorantes fez amigos da sabedoria. Vê como a loucura de Deus é mais sábia que os homens e a fraqueza, mais forte. De que modo mais forte? Cobriu toda a terra, cativou a todos por seu poder. Sucedeu exatamente o contrário do que pretendiam aqueles que tentavam apagar o nome do Crucificado. Este nome floresceu e cresceu enormemente. Mas seus inimigos pereceram em ruína total.
Sendo vivos, lutando contra o morto, nada conseguiram… Tudo o que, pela graça de Deus, souberam realizar aqueles publicanos e pescadores, os filósofos, os reis, numa palavra, todo o mundo analisando inúmeras coisas, nem mesmo puderam imaginar.
Pensando nisto, Paulo dizia: O que é fraqueza de Deus é mais forte que todos os homens (1Cor 1,25). Com isso se prova a pregação divina… Doze homens, sem instrução, morando em lagos, rios e desertos, que se lançam a tão grande empresa? Quando se pensou que pessoas que talvez nunca houvessem pisado em uma cidade e, em sua praça pública, atacassem o mundo inteiro? Quem sobre eles escreveu, mostrou que eram medrosos e pusilânimes, sem querer negar ou esconder seus defeitos. Ora, este é o maior argumento em favor de sua veracidade. Que diz então a respeito deles? Que, preso o Cristo depois de tantos milagres feitos, uns fugiram, o principal deles o negou. Donde lhes veio que, durante a vida de Cristo, não resistiram à fúria dos judeus, mas, uma vez ele morto e sepultado – visto que, como dizeis, Cristo não ressuscitou, nem lhes falou, nem os encorajou – entraram em luta contra o mundo inteiro? Não teriam dito, ao contrário: ‘Que é isto? não pôde salvar-se, vai proteger-nos agora? Ainda vivo, não socorreu a si mesmo, e morto, nos estenderá a mão? Vivo, não sujeitou povo algum, e nós iremos convencer o mundo inteiro, só com dizer seu nome? Como não será insensato não só fazer, mas até pensar tal coisa?’ Por este motivo é evidente que, se não o tivessem visto ressuscitado e recebido assim a grande prova de seu poder, jamais se teriam lançado em tamanha aventura. (Cf. Homilias sobre a Primeira Carta aos Coríntios, de São João Crisóstomo, bispo, Hom. 4,3.4: PG 61,34-36).
Os imensos desafios e provocações de nosso tempo exigem de nós cristãos clareza no seguimento de Jesus, coragem para deixar para trás a vida no pecado, ousadia no testemunho e no anúncio do Evangelho, superação das divisões que tanto ferem a Igreja e das tentações de usar as mesmas armas do mundo, fidelidade estrita à Igreja, acolhimento da palavra do Papa e dos Bispos, vida de oração e vida em comunidades cristãs autênticas, nas quais seremos sustentados em nossa árdua batalha, certos da vitória que brota da Cruz de Cristo e de sua Ressurreição.
Na cidade ou no campo e em qualquer ambiente em que nos encontrarmos, poderemos, desde já, testemunhar que Deus vê as obras de conversão, as pessoas se afastam do mau caminho, ele se compadece e se mostra lento na ira e cheio de misericórdia (Cf. Jn 3,10).
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