por Dom Antonio de Assis Ribeiro, SDB
Bispo Auxiliar da Arquidiocese Belém

  1. Oração como “teologia mística”

Francisco de Sales concebe a experiência de Oração como “teologia mística”, que mais que estudo, é experiência de relacionamento afetivo com Deus; dessa forma estimula a pensar a oração como uma experiência que envolve o nosso intelecto, a nossa afetividade e a nossa liberdade, não se reduzindo à uma pura repetição de palavras o fórmula. Na “teologia mística” o mistério é objeto de atenção do coração, de meditação afetiva, de atitude contemplativa, de interiorização, de desejo de penetração no mistério divino que é amor. Na perspectiva da oração como “teologia mística” (que não é estudo intelectual), São Francisco de Sales nos convida a encará-la como gestão da nossa vontade para estar em sintonia com as inspirações de Deus.

Citando São Gregório de Nissa, afirma que “a oração é colóquio e comunicação da alma com Deus”; colóquio e comunicação tem uma forte dimensão afetiva. “Na mística não se fala senão de Deus; na verdade, de quem poderia falar e entreter-se o amor senão do Bem-Amado?” Dessa forma a oração não deve ser reduzida à súplica! A oração, antes de súplica, é a relação amorosa com Deus, que brota da fé.

A teologia mística ocupa-se do ser de Deus e suas qualidades (suma Bondade). A teologia mística (oração) tem também uma dimensão especulativa porque essa relação amorosa aspira o conhecimento de Deus; o orante deseja ser envolvido com o amor de Deus. Dessa forma torna os discípulos orantes sábios, doutos e teólogos, ao passo que, esta faz dos seus, ardentes, afeiçoados e amantes de Deus.

“Em resumo: a oração ou teologia mística não é senão uma conversação pela qual a alma se entretém amorosamente com Deus da sua amabilíssima bondade para se unir e aderir a ela”.  “O amor não fala somente com a língua, mas com os olhos, com os suspiros e com os gestos. Sim; até o próprio silêncio e a taciturnidade lhe servem de palavra”. “Na teologia mística o principal exercício é falar a Deus e ouvir a Deus no íntimo do coração, e porque esta conversação se faz por aspirações interiores, a chamamos colóquio de silêncio; os olhos falam aos olhos, o coração ao coração, e ninguém ouve o que se diz senão os sagrados amantes que se falam”[1].

  1. Da oração profunda à Contemplação

A contemplação passa necessariamente pela experiência da oração e da meditação. A contemplação acontece dentro de um contexto de relacionamento, de amizade profunda, de constância, como as abelhas colhendo das flores o néctar para produzir o mel… “a contemplação é uma atenção amorosa!”… é movimento de amor que passa pela visão, que gera alegria… (Ex. Mãe e filho, amado e amada que se contemplam); “o amor instiga os olhos a considerar sempre mais atentamente a beleza amada, e a vista força o coração a amá-la sempre mais ardentemente”[2].

“A contemplação não é outra coisa mais que uma amorosa, simples e permanente atenção do espírito às coisas divinas”. A contemplação também envolve a dimensão intelectual do orante, pois “o conhecimento é essencial para se produzir o amor (enquanto relação), visto que nunca podermos amar o que não conhecemos: à medida que aumenta o conhecimento refletido do bem, mais cresce o amor, desde que nada obste ao seu desenvolvimento… Mas o amor não se limita ao conhecimento que está na inteligência, passa adiante e avança muito para além dele… “. Tertuliano (teólogo leigo do II século) dizia aos casais que o Amor entre o casal quando é intenso e profundo, naturalmente transborda. Assim é também autêntica contemplação. O seu transbordamento tende a se manifestar nas atitudes daquele que contempla. “A boca fala daquilo que é abundante no coração”.[3]

“A contemplação não causa fadiga” (não cansa!); não nos aprisiona no intimismo: “Para chegarmos à contemplação temos a ordinária necessidade de ouvir a santa Palavra, de entretenimento na conversação e colóquios espirituais com outras pessoas”… O autêntico contemplativo não é alguém que fica “fechado no seu mundo”, mas é aquele que fazendo experiências de Deus (solilóquios), abre-se ao diálogo e à interação com os outros exercitando em virtudes. A experiência da contemplação divina nos leva à visão das relações entre as pessoas divinas: unidade, comunhão de amor… [4]   

  1. Contemplação e unidade

A contemplação é experiência de recolhimento (unidade do ser, integração, concentração), que congrega as faculdades da alma! “Tal como quem pusesse um pedaço de ímã entre muitas agulhas, veria todos os seus bicos voltarem-se subitamente para o lado do ímã, e virem-se unir a ele, assim também, quando Nosso Senhor faz sentir no meio da nossa alma a sua deliciosíssima presença, todas as nossas faculdades se voltam para esse lado, para virem unir-se a esta incomparável doçura”.  “… todo este recolhimento procede do amor”.[5]

A experiência da meditação e da contemplação que nos estimulam ao recolhimento sem intimismo, nos ajudam a assumir um dinamismo de vida como aquele de um rio, “cujas águas correm tão serenas que os que as contemplam ou sobre elas navegam não sentem movimento algum, nem notam as suas ondulações”[6].  Tudo segue a mesma direção!

São Francisco de Sales também nos apresenta a experiência da quietude, do sagrado repouso, consolação, como consequência da contemplação. É o contrário da agitação, da dispersão, do ativismo, da agressividade religiosa. Segundo São Francisco de Sales, alma contemplativa que repousa em Deus é capaz de conservar o tesouro mais precioso (o amor); assim como a criancinha bem alimentada, repousa no seio de sua mãe e já não se deixa perturbar pelos rumores externos[7].

Vivemos numa cultura profundamente marcada pela dispersão, distração, fragmentação, tentada pelo materialismo, pelo divórcio entre fé e vida, pela intolerância religiosa, pelo fundamentalismo, pelas múltiplas formas de mundanismo religioso. Esses males também atingem de forma direta e indireta a beleza da nossa dimensão espiritual e atentam contra o verdadeiro sentido da religião. Por isso a autêntica experiência da oração em suas diversas expressões e níveis são importantes para purificar a nossa espiritualidade. Isso significa também a necessidade da educação para a oração, para a iniciar ao exercício da meditação e ao ousado estímulo à contemplação; isso também é um compromisso da evangelização e da catequese.

PARA A REFLEXÃO PESSOAL:

  1. Por que São Francisco de Sales denominou a oração como “teologia mística”?
  2. Por que a oração envolve a nossa dimensão afetiva?
  3. Por que a experiência da oração, meditação e da contemplação contribuem para a nossa integração, unidade pessoal e espírito ético?
[1] FRANCISCO DE SALES. Tratado do Amor de Deus. São Caetano do Sul (SP): Editora Santa Cruz, 2017. VI livro, I Capítulo.
[2] FRANCISCO DE SALES. Tratado do Amor de Deus… VI Livro, III Capítulo.
[3] FRANCISCO DE SALES. Tratado do Amor de Deus… VI Livro, IV Capítulo.
[4] FRANCISCO DE SALES. Tratado do Amor de Deus… VI Livro, VI Capítulo.
[5] FRANCISCO DE SALES. Tratado do Amor de Deus… VI Livro, VII Capítulo.
[6] FRANCISCO DE SALES. Tratado do Amor de Deus… VI Livro, VIII Capítulo.
[7] FRANCISCO DE SALES. Tratado do Amor de Deus… VI Livro, X Capítulo.