por Dom Antonio de Assis Ribeiro, SDB
Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belém

A relação íntima entre ética e oração parece algo pacífico, mas na realidade, nem sempre é uma convicção clara na consciência das pessoas. É possível que haja uma dissociação (separação, divórcio) entre o ato de crer e a prática da vida, ou seja, a sua dimensão moral. Isso acontece sempre quando perdemos o sentido da religião e as consequências da fé em nossa vida. Para São Tiago a experiência da fé, sem consequências morais coerentes, é morta (cf. Tg 2,17).

Tanto na Sagrada Escritura, quanto na nossa vida real, encontramos casos que mostram que nem sempre a oração dos orantes é autêntica e, por isso, pode estar em profundo conflito com a vontade de Deus e até mesmo com os básicos parâmetros da ética. Isso significa que deveremos, continuamente, refletir sobre o sentido da religião e da experiência da fé em nossa vida.

Em Brasília, Distrito Federal, no ano 2012, acontecia casos escandalosos de desvio de recursos públicos que ficaram conhecidos como o “mensalão de Brasília”. Certo dia, para efeito de denúncia, foram filmados três senhores orando e um deles agradecia a Deus pela “bênção” da distribuição de propinas. Esse fato, carregado de alto teor de hipocrisia e agressão ao Bem comum, foi profundamente repudiado, divulgado na época e o ato documentado ficou conhecido como a “oração da propina”. Uma verdadeira afronta ao sentido da religião, da fé e contradição a verdade da oração.

  1. A essência da prática religiosa

Neste caso nos referimos à essência da prática religiosa cristã, cujo vigor e consistência devem ser alimentadas pela experiência da oração. No processo de libertação da escravidão do Egito, Deus ordena ao povo, por meio de Moisés, o sentido e o objetivo de todos os preceitos religiosos, empreender o caminho da santidade: “sejam santos, porque eu, o Deus de vocês, sou santo” (Lv 19,1-2). E Jesus continua propondo o mesmo desafio dizendo: “sejam perfeitos como perfeito é o Pai celeste” (Mt 5,48).

A santidade é o esforço virtuoso que fazemos buscando a perfeição. Em termos atitudinais a santidade, como dinamismo da espiritualidade, se expressa através das virtudes: a caridade, a verdade, a paz, a misericórdia, mansidão, a bondade, a justiça, a honestidade, o respeito, a solidariedade, o perdão, a paciência, a compaixão, a tolerância etc.

A experiência da oração deve significar que estamos comprometidos com o processo de revigoração do ideal de santidade. A santidade se opõe radicalmente a tudo aquilo que é contrário ao Amor, portanto, ao próprio Deus, porque Deus é amor (cf. 1Jo 4,8).  Quem ora, está dizendo que se opõe à violência, às injustiças, mentira, ódio,  desonestidade, discórdia, vingança, maldade, indiferença, corrupção, guerra etc.

A negação do vínculo entre a fé e a ética, promove a banalidade da religião e o vazio egoísta da espiritualidade e das liturgias etc. Esse divórcio entre fé e ética já promoveu grandes desgraças na história, males dos quais, lamentavelmente também a Igreja Católica promoveu em nome de Deus. O desenvolvimento da consciência de fé que Deus é Amor, Misericórdia, o Bem supremo, desperta no fiel uma prática religiosa coerente com a identidade divina.

O crente, consciente dos seus compromissos de santificação, é alguém que está enxertado na árvore da Vida que é a fonte de todo bem. Por isso, Jesus alertou seus discípulos para a importância da nossa bondade: “uma árvore boa não pode dar frutos maus, e uma árvore má não pode dar bons frutos” (Mt 7,16-17). Jesus alertou seus discípulos para não serem estéreis. Na parábola da videira Jesus é muito firme, quando coloca com clareza, para os doze, a necessidade da comunhão consigo, sinal evidente da vontade de ver cada um dos seus discípulos fortalecidos, fecundos e felizes. «Se vocês ficam unidos a mim e minhas palavras permanecem em vocês, peçam o que quiserem e será concedido a vocês. Assim como meu Pai me amou, eu também amei vocês: permaneçam no meu amor. Se vocês obedecem aos meus mandamentos, permanecerão no meu amor, assim como eu obedeci aos mandamentos do meu Pai e permaneço no seu amor” (Jo 15,7.9-11).

As consequências éticas da espiritualidade, dependem do vínculo de comunhão com Deus e não de uma simples congregação religiosa.  Não basta se adepto de uma religião, participar de uma Igreja, promover liturgias, é necessário sintonia com a mentalidade e as atitudes de Jesus Cristo. “Nem todo aquele que me diz: ‘Senhor, Senhor’, entrará no Reino dos Céus, mas o que põe em prática a vontade de meu Pai que está nos céus” (Mt 7,21-27). 

  1. A oração sem compromisso ético

Na Bíblia encontramos diversos casos em que Deus rejeita a oração do povo por causa da falsidade, da hipocrisia, da idolatria, da violência praticada; isso acontecia quando a prática religiosa se distanciava da vontade de Deus. Vejamos alguns exemplos.

No livro dos Provérbios a oração se torna inútil e abominável para aquele que desvia seus ouvidos da Palavra de Deus (cf. Pr 28,9). Quando ao orante não interessa a prática da vontade de Deus, está afirmando o próprio Eu. O profeta Isaías começa seu livro fazendo uma séria denúncia da prática religiosa misturada com a injustiça, violência,  hipocrisia, desonestidade. “Quando estendeis as mãos, escondo de vós os olhos; sim, quando multiplicais as vossas orações, não as ouço, porque as vossas mãos estão cheias de sangue” (Is 1,15). O jejum e as orações perdem o sentido quando não tem compromisso com a santidade: “Porque as vossas mãos estão contaminadas de sangue, e os vossos dedos, de iniquidade; os vossos lábios falam falsamente, e a vossa língua pronuncia perversidade” (Is 59,3). De nada serve o culto (liturgia) quando a honra só está nos lábios, mas o coração está longe de Deus (cf. Mt 15,8).

Uma realidade semelhante também o profeta Jeremias observou no culto formal no templo misturado com palavreado mentiroso, prática de roubos, morte, adultério, mentiras, idolatria (cf. Jr 7,8-10). A sentença divina é clara em relação à oração: “Não insista comigo, porque eu não vou atender” (Jr 7,16).

Os falsos profetas, enganadores do povo, videntes e adivinhos não mereciam atenção e a eles Deus não respondia (cf. Mq 3,5-7). A prática da verdadeira religião não está na apresentação de sacrifícios, ofertas, mas na prática do direito, no amor à misericórdia e no caminhar humildemente em comunhão com Deus (cf. Mq 6,6-8). É o mesmo que Deus também declara ao povo através do profeta Isaías (cf. Is 1,10-14). “Quando vocês erguem para mim as mãos, eu desvio o meu olhar; ainda que multipliquem as orações, eu não escutarei. As mãos de vocês estão cheias de sangue” (Is 1,15).

A relação entre ética e religião também foi objeto de reflexão do profeta Malaquias: o profeta denuncia a desordem do culto, a falta de zelo, a desonestidade, a profanação do templo, a falta de seriedade para com a religião, atitudes estas em incoerência com o que suplicavam a Deus (cf. Ml 1,7-14). Dessa forma a oração de bênção se transforma em maldição (cf. Ml 2,1-4).

Passando para o Novo Testamento encontramos também o mesmo convite para a coerência entre a oração e boas atitudes. Jesus condenou o comportamento dos escribas e fariseus hipócritas que misturavam aparente piedade, mas na verdade, eram falsos e violentos (cf. Lc 20,47; Mt 23). Em sua forte pregação, João Batista dirigiu-se a alguns como “Raça de cobras venenosas” dizendo-lhes que não bastava pensar e dizer “Abraão é nosso pai” e assim apelava para a necessidade da conversão, da bondade e da prática da caridade (cf. Lc 3,7-8). Jesus mesmo disse também algo semelhante a outro grupo apelando para o dever da coerência em fé e atitudes: “Se vocês são filhos de Abraão, façam as obras de Abraão” (Jo 8,39). No entanto por causa do ódio que nutriam contra Jesus querendo matá-lo, Jesus concluiu dizendo-lhes: “o pai de vocês é o diabo, e vocês querem realizar o desejo do pai de vocês. Desde o começo ele é assassino, e nunca esteve com a verdade, porque nele não existe verdade. Quando ele fala mentira, fala do que é dele, porque ele é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8,44). “Quem é de Deus ouve as palavras de Deus. Vocês, porém, não ouvem, porque vocês não são de Deus” (Jo 8,47). Jesus acusou duramente a incoerência entre o culto e a moralidade dos seus inimigos.

Num mundo profundamente marcado por uma crescente onda de banalidade da religião, tratada como objeto de consumo pessoal e tantas vezes tão desconectada de compromissos éticos, agredida pelo charlatanismo, somos chamados a testemunhar através da oração o primado do amor. Qualquer manifestação de culto se não tiver como compromisso o amor, de nada serve! A oração sempre visa a glória de Deus e a santidade do fiel. Por isso, vale a pena sempre recordarmos esta oração: “Espírito Santo, amor do Pai e do Filho, inspirai-me sempre o que devo pensar, o que devo sentir, o que devo calar, o que devo escrever, o que devo dizer e como dizer, o que devo fazer e como fazer, para a Vossa glória, para o bem de todos e a minha própria santificação! Amém!”

PARA A REFLEXÃO PESSOAL:

  1. Por que há uma relação inseparável entre oração e ética?
  2. O que lhe provoca a “oração da propina”? Você já testemunhou outras formas de orações desonestas?
  3. Qual texto dos profetas lhe chamou a atenção?