Imagem: Jesus Cristo (©Renáta Sedmáková – stock.adobe.com)
“Somos povo santo e pecador”, diz a oração eucarística de número V, do Congresso Eucarístico de Manaus, 1975. O Concílio Vaticano II afirma que “enquanto Cristo, ‘santo, inocente, imaculado (Hb 7,26), não conheceu o pecado (cfr. 2 Cor 5,21), e veio ao mundo para expiar unicamente os pecados do povo’ (cfr. Hb 2,17), a Igreja, que reúne em seu seio os pecadores, é, ao mesmo tempo, santa e sempre necessitada de purificação, dedicando-se sem descanso à penitência e à renovação” (LG, 39). A Igreja vem do Senhor, porém é formada por homens e mulheres com suas limitações, pecados e possibilidades. Na vida eclesial, a santidade e o pecado caminham juntos e os fiéis carregam consigo a mais desafiadora peregrinação, aquela de percorrer dentro de si próprio os caminhos que levem à separação entre o joio e o trigo. Essas dimensões necessitam do reconhecimento pela comunidade a fim de que realizem um projeto de conversão perene para alcançar a santidade. Somos, pois, chamados a abraçar essa conversão de vida.
A palavra Igreja tem origem no grego ékklésia, cujo significado é reunião, assembleia, comunidade de fiéis cristãos, seja em sentido do corpo místico de Cristo, como também a reunião do povo de Deus[1]. A seguir, veremos como estas dimensões foram anunciadas pelos santos padres, os primeiros escritores cristãos.
A convivência eclesial entre bons e maus.
Fulgêncio de Ruspe, bispo na Tunísia nos séculos IV e V, afirmou que a Igreja é a comunidade onde estão inseridos tanto o trigo, quanto o joio, os maus que se confundem com os bons na comunhão dos sacramentos e que, em cada estado de vida, seja sacerdotal, seja monástico ou ainda laical, encontram-se juntos, bons e maus. Segundo o bispo, não devemos abandonar os bons pelos maus, mas suportar os maus pelos bons, pautados nos valores da fé e da caridade, com vistas a superar, na Igreja, as sementes da infidelidade e do pecado dentre os seus membros. É útil que, na Igreja, os maus sejam tolerados pelos bons, a fim de que os primeiros, ao perceberem o bem e o amor, rejeitem os seus próprios males e, deste modo, busquem a conversão para que, pela misericórdia de Deus, possam obter uma vida mais justa e mais santa. No final dos tempos, o Senhor separará os bons dos maus[2].
O joio entre o trigo.
São Cipriano, bispo de Cartago no século III, afirmava que na Igreja, o fiel depara-se com a folha daninha, o joio, no entanto, a nossa fé e a nossa caridade não devem ficar aprisionadas por este aspecto ao ponto de nos afastar da Igreja, ao contrário, devemos nos empenhar ainda mais para ser o trigo e, assim, quando iniciar a colheita, nos será dado contemplar o fruto da nossa obra como também de nossa fadiga. Com a graça de Deus, devemos ser vasos de ouro ou de prata para anunciar o amor sobre o mal[3].
Os bons em convivência com os maus.
Santo Agostinho, bispo de Hipona nos séculos IV e V assevera que, neste mundo, a Igreja busca a sua futura glorificação com a humildade presente, em meio às tormentas e à dor, ao cansaço das coisas e aos perigos das tentações, possuindo uma única alegria: a esperança de que maus e bons, envolvidos entre si, sejam recolhidos na rede da qual fala o evangelho (cfr. Mt 13,47-50) e, neste mundo, como se fosse um mar, viajem todos juntos nesta mesma rede até chegarem à encosta, onde então, maus e bons serão separados, os bons receberão a glorificação para que Deus seja tudo em todos (cfr. 1 Cor 15,28)[4].
Agostinho afirmou que, neste tempo, nesta realidade, existe o joio e o trigo e que não é razoável lançar fora todo o joio antes do tempo da colheita porque com a separação antes da colheita, pode-se jogar fora tanto um quanto o outro, como nos relata o evangelho (cfr. Mt 13,24-30). Quando os grãos de trigo começarem a aparecer e crescerem as suas espigas, elas se tocam com o joio porque estão todos na messe, mas serão diferentes do joio[5]. Neste mundo, todos convivem com o trigo e o joio, pois os dois estão dentro de todo ser humano, razão pela qual necessitamos permanentemente de conversão de vida, pessoal, comunitária e social.
A Igreja como mãe.
Ainda segundo Santo Agostinho, a Igreja, como verdadeira mãe, não insulta com orgulho os filhos pecadores, mas perdoa aqueles já conciliados. A Igreja Católica acolhe os pecadores, perdoa os seus fiéis uma vez redimidos para confirmá-los na piedade[6].
A superação da divisão.
São Clemente, bispo de Roma, Papa no final do I século, exortava os cristãos de Corinto para que superassem o pecado da divisão, fator que abalou a vida da Igreja no final do primeiro século. Ele considerava toda a questão da divisão um escândalo, o qual deveria ser superado (cfr. Mc 9,42). Aquela divisão causou perversão, desencorajando a muitos e fez com que tantos outros ficassem entristecidos[7]. O fato é que a comunidade se revoltou contra os seus dirigentes, sobretudo os presbíteros. Desta forma, São Clemente manifestava que era vergonhosa aquela situação e convocava a todos para, com a unidade, superar o pecado da divisão[8].
Jesus é a cabeça da Igreja.
São Leão Magno, Papa do século V, afirmou que os membros da Igreja estão sujeitos à fragilidade do pecado, contudo a graça é maior na vida cristã. Há uma luta contínua na superação do mal na vida dos fiéis. Desta forma, nenhum sacerdote ou pontífice é tão perfeito, nenhum bispo é tão imaculado de poder oferecer hóstias de pacificação pelos delitos do povo, bem como pelos seus pecados. As pessoas pedem aos seus pastores o amor pela Igreja, assim como o Senhor pediu para Pedro, de modo que quanto maior sentirmos sobre nós a sobrecarga, o peso, tanto mais serão nossos deveres. Jesus Cristo garante a sua presença na Igreja até o fim dos tempos (cfr. Mt 28,20), pois Ele é a sua cabeça[9].
A Igreja é chamada a viver a dimensão da santidade de seus membros para manifestar o amor de Deus no mundo. Ela deve testemunhar a alegria da Ressurreição do Senhor. No entanto, esta mesma Igreja, por ter em seu meio pecadores e pecadoras, necessita da conversão pessoal, comunitária e social para o seguimento fiel à Cristo Jesus. Na medida em que reconheçamos a nossa condição de pecadores, haverá a superação do clericalismo, do individualismo, da falta de amor para com o próximo, facilitando o desejo ardente de realizar testemunho do evangelho com a sua própria vida, promovendo a santidade entre os seus membros que, neste mundo, caminharão juntos em meio ao joio e o trigo para, ao final, na eternidade, apresentar ao Senhor a boa semente da caridade e do amor.
[1] Cfr. Chiesa. In: Il vocabolario treccani, Il Conciso. Milano, Trento, 1998, pg. 308.
[2] Cfr. Fulgenzio di Ruspe, Regola della vera fede, 43. In: La teologia dei padri, v. 4. Città Nuova Editrice, Roma, 1982, pg. 34.
[3]Cfr. Cipriano di Cartago, Le Lettere, 54,3 (Ai confessori romani). In: Idem, pg. 33.
[4] Cfr. Agostino, La Città di Dio, 18,49. In: Idem, pg. 33.
[5] Cfr. Agostino, Esposizioni sui salmi, 25,5. In: Idem, pgs. 33-34
[6]Cfr. Il Combattimento cristiano, 30,32. In:Opere di Sant`Agostino. Morale e Ascetismo cristiano. Nuova Biblioteca Agostiniana. Città Nuova Editrice, Roma, 2001, pg 121.
[7] Cfr. Clemente aos romanos, 46, 8-9. In: Padres Apostólicos, São Paulo, Paulus, 1995, pg. 57.
[8]Cfr. Idem, 47, 6-7, pg. 57.
[9] Cfr. Leone Magno, Sermoni, 5,1-4. In: Idem, pgs. 85-86.
POR Dom VITAL CORBELLINI
Bispo de Marabá - PA