Dom Pedro José Conti
Bispo da Diocese de Macapá
Hussein estava à mesa do jantar quando um dos seus escravos, acidentalmente entornou uma vasilha quente sobre os joelhos de seu senhor. O escravo, visivelmente aterrorizado, recitou um verso do Alcorão: – O céu pertence àquele que domina sua raiva. – Não estou com raiva – disse Hussein. O escravo prosseguiu: – O céu pertence àquele que perdoa ao seu irmão. – Eu lhe perdoo – disse Hussein. O escravo concluiu a estrofe: – Porque Alá ama a quem é benevolente! Hussein imediatamente respondeu: – Eu lhe entrego a sua liberdade! Você não é mais um escravo. E lhe dou quatrocentas moedas de prata.
No evangelho de Mateus do 24º Domingo do Tempo Comum continuamos a leitura do “Sermão da Comunidade”. Depois do ensinamento sobre a “correção fraterna”, Jesus responde de maneira nova e original a uma das questões mais debatidas naquele tempo e, talvez, de todos os tempos: “Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim?” (Mt18,21). Perdoar a quem nos ofendeu ou prejudicou não é patrimônio somente dos cristãos. Toda pessoa religiosa ou simplesmente humana e compreensiva sabe que o perdão tem a força de mudar o relacionamento raivoso entre as pessoas, corrige maus entendidos, pacifica os corações e afasta pensamentos de vingança e de ódio. O perdão é um “santo remédio” para muitas situações que parecem sem solução e se arrastam no tempo envenenando a vida de tantas pessoas. “Até sete vezes?” Este seria o número de vezes considerado mais do que justo. Perdoar além disso podia parecer tolerância com o pecado e, portanto, o irmão nunca seria corrigido. A sombra ameaçadora do castigo pairava sempre atrás da aparente magnanimidade do perdão. O chamado “bom senso”, no fundo, ainda hoje, não acredita tanto assim no remédio da misericórdia.
A resposta de Jesus surpreende, não tanto pelo número em si, evidentemente simbólico (setenta vezes sete) – para dizer sempre – mas pela parábola que o Mestre contou e que explica maravilhosamente a verdadeira motivação do perdão ao irmão. O caso dos dois devedores não se encaixa em nenhuma norma. Nunca funcionará como uma lei a ser obedecida. Somente se entende à luz da gratidão que se esperava do grande devedor após que o extraordinário “patrão” lhe tinha perdoado “uma enorme fortuna”. Na prática o “patrão” deu exemplo de uma “justiça” diferente, capaz de cobrar, mas também de perdoar se o irmão endividado demostrar a absoluta impossibilidade de saldar a dívida. Aquele “patrão” tão generoso iniciou uma corrente da misericórdia que podia, ou devia, continuar. Em Israel, quem não conseguia pagar uma dívida não era propriamente “vendido” no sentido de se tornar propriedade do credor para sempre. O inadimplente era obrigado a trabalhar para o credor o tanto que fosse necessário até zerar a dívida. Era possível também que algum parente ou amigo pagasse aquela dívida resgatando assim a liberdade e a dignidade do endividado. Com isso entendemos que perdoar uma dívida não era simplesmente dispensar um dinheiro, era sobretudo valorizar a pessoa porque, liberta do peso da dívida, voltava a gozar livremente da própria vida. O patrão da parábola fica indignado porque o primeiro devedor não soube usar da mesma compreensão e bondade com o seu próprio irmão que, afinal, lhe devia infinitamente menos. O Pai de quem Jesus fala no evangelho não é um bonachão que finge de nada e deixa passar tudo, só porque perdoa. Ele é, digamos, um “cobrador”, não para castigar os desobedientes, mas para exigir que façamos o mesmo dele. Deixando de perdoar “a quem nos ofendeu” acabamos, humilhando e desprezando o irmão. Será que nós somos tão superiores assim? Nunca erramos? Com o perdão, talvez, ganhamos um amigo, alguém agradecido, que, esperamos, saberá, por sua vez perdoar. Escrevi “talvez” porque o caminho do perdão é longo e nem sempre surte o efeito desejado. A própria parábola dá a entender isso. No entanto, entre as várias opções – vingança, castigo, cobrança, perdão – cabe a cada um escolher o que dará paz ao seu coração e… “liberdade” a quem errou, como fez Hussein.