Por Dom Vital Corbellini
Bispo da Diocese de Marabá – PA.

            Jesus deu uma ordem para os seus discípulos: “Dai-lhes vós mesmos de comer”(Mt 14,16), diante do pedido deles para que o Senhor despedisse a multidão faminta para que ela fosse aos povoados comprar comida (Mt 14,15). Foi um imperativo de Jesus manifestando a sua autoridade como Messias, como Mestre de Deus junto ao seu povo, sobretudo aos seus discípulos[1]. É também o Lema da Campanha da Fraternidade 2023. Jesus disse de uma forma decisiva a fim de que eles dessem comida à multidão. Os discípulos disseram que tinham cinco pães e dois peixes. Jesus agiu diante do pouco que eles apresentaram multiplicando os pães e os peixes e toda a multidão se saciou, ficou feliz diante de sua manifestação misericordiosa, de ação bondosa e caritativa, em favor do povo necessitado.

Os sentimentos de Jesus e dos discípulos.

Eles foram totalmente diferentes. Enquanto Jesus encheu-se de compaixão ao ver a grande multidão e curou os que estavam enfermos (Mt 14,14), os discípulos queriam a despedida da multidão. Jesus retrucou ao desejo dos discípulos, uma vez que era o fim do dia, e o lugar era deserto. Enquanto os discípulos pensavam no imediato sem os compromissos, Jesus pensava nas pessoas, na vida delas, porque ao longo do caminho poderiam desfalecer por não ter comido o pão necessário. Sendo seus discípulos e discípulas somos chamados a ter os mesmos sentimentos de Jesus, de compaixão em favor dos pobres e das pessoas que passam fome.

Dai-lhes vós mesmos de comer (Mt 14,16)

Foi a ordem de Jesus aos discípulos para que eles também agissem em favor dos outros. Era claro que Jesus foi o protagonista da multiplicação, como enviado do Pai, e como o Messias verdadeiro, que também alimentaria o povo faminto. Deste modo Jesus agiu em favor dos pobres, das pessoas necessitadas. Mas ele quis a colaboração humana, os seus discípulos a fim de que esses não permanecessem na indiferença frente ao sofrimento do povo de modo que eles colaboraram na distribuição dos pães, feita por Jesus na multiplicação dos pães.

Compaixão e Ação.

A compaixão do Senhor o fez agir, pela cura aos doentes, daquele povo que o seguia, e esse estava com fome. Jesus agiu para o bem de toda a multidão faminta, dando-lhes a comida, o pão necessário e os peixes. Hoje ele nos pede para que assumamos atitudes de solidariedade porque são milhões os brasileiros e as brasileiras que passam pela necessidade da comida e insegurança alimentar. O fato é que se hoje as pessoas tenham comida, não teriam amanhã a certeza de ter um prato de comida. Como Jesus somos chamados a ter compaixão porque as pessoas passam fome e solicitam a comida, mas também somos chamados  amenizar o flagelo da fome no Brasil e no mundo. É preciso agir em ações que resultam vida sobre a fome de muitas pessoas.

Responsabilidade mútua.

A ordem de Jesus para os discípulos era para que eles não fossem indiferentes diante da fome do povo. Ela visava a responsabilidade mútua, a uma conclamação à ação, a fim de que os discípulos constatassem as necessidades dos que estariam ao seu redor, em virtude do caminho eclesial, da vida fraterna, não se eximiriam da compaixão e da responsabilidade. A ordem de Jesus une interioridade e exterioridade, espírito e prática. O discípulo e a discípula do Senhor que estão em comunhão com Ele, é chamado a imitar a sua ação, pelo fato de que a compaixão o impele à ação porque a percepção da realidade por parte dos que seguem a Jesus levá-los-á para atitudes objetivas em favor das pessoas famintas[2].

O lema da Campanha da Fraternidade 2023.

Ele aponta a pessoa e a comunidade para a ação. O fato é que a fome não é um dado ocasional, mas é um fenômeno social, coletivo, estrutural, que produz desigualdades, para a manutenção da miséria em vista de perpetuação do poder[3]. É também uma questão política[4], porque é possível superá-la com políticas públicas. É possível amenizar a fome no País se houver a vontade política, porque este sendo um grande exportador de grãos, de alimentos, não seria possível que internamente milhões passem fome. No entanto é uma realidade o flagelo da fome no país. A responsabilidade mútua que constitui a ordem de Jesus supera o tratamento pelo medo do pobre, que no texto o chama de aporofobia, sendo a aversão e desprezo aos pobres, aos famintos e vulneráveis. É o tratamento para as pessoas que são descartáveis pela sua condição de classe que vivem nos centros urbanos ou recorrem à migração para fugir da fome e da guerra[5]. O lema da CF 2023 ajuda para ações em favor das pessoas que passam fome e não se afastar das mesmas.

Jesus, superior a Moisés.

A narrativa do milagre da multiplicação dos pães tem uma referência ao deserto, onde o povo foi alimentado pelo próprio Deus, com o maná, no qual Ele disse a Moisés que fez chover para o povo o pão do céu na qual o povo recolhia uma porção diária (Ex 16, 4). Mateus colocou Jesus como o novo Moisés, superior a ele, porque ele proveu o sustento mesmo diante da aparente impossibilidade[6]. Jesus, sendo o novo Moisés, colocou o ensinamento que Deus continua a alimentar os seus filhos e suas filhas não mais com o maná que cai dos céus, mas pela responsabilidade fraterna daqueles que se fazem discípulos e discípulas de Jesus. Jesus não agiu sozinho, mas contou com a colaboração dos discípulos ao saber que tinha cinco pães e dois peixes de modo que ele fez a multiplicação dos pães e fez os discípulos darem à multidão (Mt 14,19). Jesus quis que os seus discípulos se sentissem interpelados pelas necessidades das pessoas quando disse que era para eles darem de comer à multidão faminta (Mt 14,16).

Jesus, superior a Eliseu.

O texto de Mateus (Mt 14,13-21) referia-se também a uma outra narrativa do Antigo Testamento (2 Rs 4,42-44) onde Eliseu com a graça de Deus alimentou com vinte pães cem pessoas, Jesus saciou uma multidão mais de cinco mil pessoas com cinco pães e dois peixes. Jesus é superior a Eliseu, é maior que ele. Ele é profeta por excelência, aquele que alimentou com a palavra, pela confiança inabalável em Deus, e anuncia a salvação para as pessoas que permanecem fiéis a ele e trabalham em favor da dignidade humana[7].

A ordem de Jesus na patrística.

Santo Ambrósio, Bispo de Milão e Padre da Igreja colocou também a ordem de Jesus em dar ao povo o pão. Falando ao público o bispo dizia que os fiéis possuíam o alimento dos apóstolos do Senhor. Era para eles comerem o pão material para também alimentar-se do alimento de Cristo, ao alimento do corpo do Senhor, aquele cálice que dá vida e o veste da alegria que nasce pela remissão dos pecados[8].

O alimento em abundância na eternidade.

O poeta cristão Prudêncio, o mais importante da Igreja Antiga, séculos IV e V, afirmou que a multiplicação dos cinco pães e dos dois peixes fez a multidão se saciar de modo que avançaram doze cestos cheios de pedaços da multiplicação, ao que o milagre do Senhor colocou a abundância das coisas, dos alimentos na mesa celeste para todos os que na terra realizaram a partilha do pão a quem mais tem necessidade[9].

A ordem de Jesus continua na realidade atual de dar de comer a quem mais precisa do pão e de engajamento por políticas públicas que favoreçam os pobres, os famintos. A indiferença não pode ocorrer diante da realidade de uma multidão faminta, na qual o Senhor pediu aos seus discípulos de dar de comer. Com os cinco pães e os dois peixes fez Jesus a multiplicação. É preciso trabalhar com o pouco que se tem para melhorar as condições de pessoas que passam por necessidades. A Palavra de Jesus continua a ressoar nos nossos ouvidos e corações para que tenhamos como ele compaixão e agimos em favor dos pobres e de pessoas famintas na família, na comunidade e na sociedade.

[1] Cfr. CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil / Campanha da Fraternidade 2023. Texto-Base. Brasília: Edições CNBB, 2022, pg. 67

[2] Cfr. Idem, pg. 67.

[3] Cfr. Idem, pg. 24.

[4] Cfr. Idem, pg. 44.

[5] Cfr. Idem, pg. 40.

[6] Cfr. Idem, pg. 69.

[7] Cfr. Idem, pg. 71.

[8] Cfr. Ambrogio. Sermone 15,28. In: Gerardo di Nola. Monumenta Eucharistica. La testimonianza dei Padri della Chiesa. Vol. 1, Secoli I-IV. Introduzione al primo Volume a cura di Enrico Cattaneo S.I. Roma,Edizioni Dehoniane, 1994, pg. 425.

[9] Cfr. Prudenzio, Dittochaeon, XXXVIII. In: Idem, Vol II, V secolo. Roma, Edizioni Dehoniane, 1997, pg. 42.