CARTA DE DOM ERWIN KRÄUTLER : PADRE SÁVIO CORINALDESI – MISSIONÁRIO XAVERIANO

por + Erwin Kräutler C.PP.S./ Bispo Emérito do Xingu

Padre Sávio Corinaldesi, Missionário Xaveriano, +7.3.2024 Parma, Itália
ad perpetuam huius Domini sacerdotis memoriam.

Lembro com imensa gratidão o Padre Sávio, o seu exemplo de abnegada dedicação ao Povo de Deus do Xingu. Os anos que passou nesta terra abençoada se prolongam até hoje, não mais pela presença física, mas pelo marcante legado que esse sacerdote exemplar nos deixou.

Chegou em 1973 a Altamira, nos primeiros anos da Transamazônica. Junto com o padre Conrado começou a nuclear e acompanhar as comunidades que então nasceram e até hoje existem ao longo da rodovia e de suas vicinais. Foram comunidades samaritanas de mútua ajuda entre as famílias que vieram de toda parte e enfrentaram dificuldades de todo gênero. À dimensão samaritana havia de corresponder uma específica dimensão profética. A dignidade humana exigia posições inequívocas em denunciar tudo aquilo que contradizia às promessas propagadas pelo Governo Militar como chamariz para atrair famílias do Nordeste e de outras partes do Brasil para a Amazônia. Foram aconselhadas a deixar tudo que possuíam nos seus estados de origem, pois na Transamazônica encontrariam casa mobiliada e um lote de terra para deitar as sementes de uma nova vida no finalmente descoberto “eldorado de riquezas” que se supunha existir no Brasil. “Em se plantando tudo dá” prometeram os Militares, rememorando o que Pero Vaz de Caminha já escreveu em 1500 ao rei Dom Manuel, a respeito das recém-“descobertas” terras que então levaram o nome de “Terras da Santa Cruz”. Na realidade o eldorado logo se revelou como ficção. Não havia posto médico, escola, transportes, assistência social. O povo ficou por muito tempo entregue à própria sorte. Mas só denunciar não bastava. As reivindicações e exigências do povo teriam que ser ouvidas nas altas esferas governamentais. Não bastava um passivo “esperar por dias melhores”, foi necessário “organizar a esperança” em atitudes concretas de solidariedade, na formação de alianças entre as comunidades, em assembleias, reuniões e encontros. A Palavra libertadora de Deus na Sagrada Escritura, meditada nas visitas do Padre e nas celebrações da comunidade, deu coragem ao povo e foi o alicerce espiritual para enfrentar as lutas e labutas de cada dia.

As Assembleias do Povo de Deus do Xingu são verdadeiros marcos na história desta Igreja local. A primeira aconteceu em 1984 na celebração dos 50 anos da Prelazia do Xingu. O Padre Sávio, coordenador do Centro de Pastoral, trabalhou incansavelmente na preparação destes eventos celebrados de cinco em cinco anos que reuniram representantes das centenas de comunidades espalhadas pelo vasto território da Prelazia de mais de 350 mil quilômetros quadrados. Quantas noites o Padre Sávio dedicou à elaboração de subsídios que ajudaram as comunidades a se preparar e escolher quem as representaria na Betânia. As assembleias foram verdadeiras manifestações de comunhão fraterna e concreta participação de mulheres e homens representantes de todo o Povo de Deus que vive nas cidades e vilas, à beira dos rios e igarapés e ao longo das estradas e suas vicinais, até nos últimos rincões da Igreja do Xingu. O acurado e adequado preparo garantiu que os frutos dessas reuniões de grande envergadura ultrapassassem a animada convivência de irmãos e irmãs na Betânia. Devemos o sucesso de várias dessas assembleias ao admirável zelo e carinhoso empenho do Padre Sávio.

Mas há uma história que, como nenhuma outra, demonstra a extraordinária sensibilidade do Padre Sávio quando se tratava de justiça e da defesa dos direitos humanos. Foi seu acirrado esforço para elucidar os crimes sofridos por vinte adolescentes de Altamira, vários deles vítimas letais de sevícias inimagináveis, outros com sequelas pelo resto de suas vidas e outros que conseguiram escapar aos perversos carrascos na última hora. Os crimes aconteceram entre os anos 1989 e 1994. Na época não achei outras palavras para descrever o sofrimento das famílias e a dor que enchia toda a cidade de Altamira do que lembrar alguns versículos do profeta Jeremias citados no Evangelho de São Mateus: “Em Ramá se ouviu uma voz, lamentação, choro e grande pranto: Raquel chora os seus filhos, e não quer ser consolada, porque já não existem” (Mt 2,18). Tantas “Raquel” em Altamira! Tantos pais, familiares, parentes chorando desesperados. E as autoridades policiais e judiciárias surdas, cegas, mudas, omissas, desleixadas, como se nada tivesse acontecido, enquanto “a voz do sangue” de inocentes, “do solo clamou a Deus” (Gen 4,10)! Por que não se moveram? Já havia informações precisas sobre os crimes e criminosos. No entanto deixaram passar anos perdendo vestígios importantes e indícios que apontavam para os autores dos delitos? Na Prelazia do Xingu não nos conformamos e denunciamos essa estranha morosidade que consideramos intencional. Quem estava na frente de todas as tentativas de desvendar os crimes foi o Padre Sávio. Junto com as mulheres de Altamira criou o “Comitê em Defesa da Vida das Crianças Altamirenses” para denunciar o abandono que as famílias sentiram da parte das autoridades judiciárias do Estado. É minha convicção de que, se não fosse a incansável empenho do Padre Sávio, esses crimes teriam sido simplesmente “arquivados” sob a falsa alegação de inexistência de materialidade de ações criminais e falta de provas para a condenação dos criminosos. É claro que com este seu engajamento contra a violência, a favor da vida e nas buscas por justiça o Padre Sávio não granjeou somente amigos. Mas exatamente nesta arriscada situação de ser agredido e caluniado, se mostrou a insigne personalidade deste Padre que nunca se deixou intimidar ou dissuadir. Parecia como o Mestre na sinagoga de Nazaré: queriam expulsar Jesus da cidade e “o levaram até ao cume do monte em que a cidade deles estava edificada, para dali o precipitarem. Ele, porém, passando pelo meio deles seguiu o seu caminho” (Lc 4,29-30). Só um homem alimentado diariamente pela oração, profundamente enraizado na fé, de uma vida ancorada e de confiança ilimitada em Deus, resiste à tentação do desânimo, de, na frustração, largar as rédeas e sair de cena.

“Devemos tornar mais aguda a consciência do dever de solidariedade para com os pobres. Esta solidariedade significará fazer nossos seus problemas e lutas e saber falar por eles. Isto se concretizará na denúncia da injustiça e opressão, na luta contra a intolerável situação em que se encontra frequentes vezes o pobre e na disposição de dialogar com os grupos responsáveis por esta situação a fim de fazê-los compreender suas obrigações” (Documento de Medellín, 10). Esse propósito que começa com “devemos”, o Padre Sávio seguiu à risca. É a síntese de toda a sua vida de padre, de missionário xaveriano, de cristão apaixonado pelo Senhor Jesus e seu Reino. É um epitáfio gravado sobre a túmulo de Padre Sávio para lembrar que dedicou sua vida aos pobres e excluídos, aos que o mundo joga “fora” e considera “supérfluos e descartáveis” (Documento de Aparecida, 65). Ele mesmo tornou-se “pobre” com os pobres. A opção pelos pobres foi a opção de sua vida.

Obrigado de coração, caro padre Sávio!

Altamira, 28 de março de 2024
Quinta-feira Santa da Última Ceia do Senhor

+ Erwin Kräutler C.PP.S.
Bispo emérito do Xingu

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