Introdução
O dia 25 de maio de 2020 poderia ter sido mais uma jornada em que os jornais do mundo estariam concentrados nos mais variados subtemas da pandemia da COVID-19, se não tivesse acontecido outra tragédia. Desta vez, não provocada por um vírus, mas por um bruto e frio policial americano chamado Derek Chauvin.
O fato, largamente noticiado, aconteceu em Minneapolis, no estado de Minnesota, nos Estados Unidos. Um homem chamado George Perry Floyd, 46 anos, afro-americano, fora acusado de usar uma nota falsificada de US$ 20,00 (vinte dólares) numa loja; denunciado por um funcionário, George foi perseguido pela polícia, imobilizado, algemado, deitado de bruços. Como se não bastasse o bruto Derek ajoelhou-se em seu pescoço enquanto o acusado sussurrava dizendo que não conseguia respirar; foi asfixiando-o até à morte. A imagem é chocante!
O ato brutal, hediondo, deprimente, indignante, vergonhoso causou comoção imediata naquela cidade formando um enorme protesto que se alastrou por outros estados americanos, Europa e outros países do mundo.
- “Não consigo respirar!”
O sussurro estrangulado de George Floyd foi suficientemente para incomodar o mundo. Isso aconteceu porque lá onde um ser humano é humilhado e violentado, ocorre um atentado contra a humanidade. O grito do mundo, com seus protestos e até lamentavelmente, atos violentos, é a manifestação de que hoje cresce cada vez mais na humanidade a consciência de dignidade, respeito e irmandade universal.
Uma vez que os povos e nações deram passos tão significativos na economia, nas ciências, na seriedade política e consciência de direitos, não há espaço para a tolerância diante de crimes dessa natureza. As atitudes do assassino Derek Chauvin representam o monstruoso bicho que está em cada um de nós quando perdemos a consciência de civilidade e a racionalidade que tempera as nossas atitudes.
Isso não é poesia, nem utopia, é a realidade do ser humano. Há uma só humanidade. Fora dos status socio-econômico e das condições circunstanciais, ninguém é maior do que ninguém. Na essência somos todos iguais, independente de origem, cor, sexo, língua, religião, profissão, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição; é isso que postula a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
“Não consigo respirar” é o grito pelo mínimo respeito pela dignidade de ser e viver. “Não consigo respirar” é a dramática denúncia da prepotência humana, do absurdo da insensatez e da brutalidade de quem em nome da ordem, despreza a vida e a suprime.
“Não consigo respirar” é o gemido denunciante do atentado contra a negação daquilo que é mínimo e gratuito, o oxigênio. A negação do oxigênio ao outro, porém, de forma tão humilhante (estando de joelhos em cima do pescoço do outro) é reflexo da total perda daquilo que mais nos caracteriza enquanto humanos, a capacidade de discernimento e de expressar compaixão, a capacidade de se colocar no lugar do outro.
- “Eu tenho um Sonho”
O aterrorizante fato de Minneapolis que aniquilou Geoge Floyd gerando uma incontida fúria de milhões de pessoas pelo mundo afora, nos recordou a luta do mártir da defesa da dignidade humana, contra o racismo, o pastor batista Martin Luther King, assassinado em 1968.
A grande convicção de Martin Luther King era esta: “A escuridão não pode expulsar a escuridão; apenas a luz pode fazer isso. O ódio não pode expulsar ódio; só o amor pode fazer isso”. Tratava-se da força da não violência!
Impulsionado pela força do amor contra toda e qualquer forma de violência baseada em diferenças raciais, Martin Luther King, sonhava com um mundo onde as relações humanas não fossem medidas pelo critério de padrões secundários, mas pela essência da mesma dignidade, comum a todos os humanos. E seu sonho ecoou pelo mundo!
“Eu digo a vocês hoje, meus amigos, que embora nós enfrentemos as dificuldades do hoje e do amanhã… Eu ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano… Eu tenho um sonho que um dia esta nação se levantará e viverá o verdadeiro significado de sua crença – nós celebraremos estas verdades e elas serão claras para todos, que os homens são criados iguais…
Eu tenho um sonho… os filhos dos descendentes de escravos e os filhos dos descendentes dos donos de escravos poderão se sentar junto à mesa da fraternidade… Eu tenho um sonho que um dia… um estado que transpira com o calor da injustiça, que transpira com o calor da opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça… Eu tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter…” (Martin Luther King).
- A Igreja e a dignidade humana
Seguindo a sensibilidade e os passos do seu fundador, mestre e senhor, a Igreja também sonha! Seu sonho é o Reino de Deus, a radical transformação das relações humanas baseadas no amor. Por isso, os discípulos de Jesus Cristo conservam a consciência que há uma íntima união entre fé, acolhida, tutela, defesa e promoção da dignidade humana.
Certa dessa convicção a Igreja afirma: “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração” (GS, 1).
Os fatos de Minneapolis não estão confinados na questão racial, mas atingem a totalidade das relações humanas. Há um “Derek Chauvin” dentro de cada um de nós que se levanta embrutecido quando não crescemos na consciência da íntima relação entre amor a Deus e ao próximo. Essa é a dimensão moral da fé que confere sentido e qualidade agradáveis para as nossas atitudes e escolhas.
A Igreja, porta-voz dos valores e atitudes do Reino de Deus, tem a consciência de ser «perita em humanidade» (PP, 13), por isso, fatos como esse, onde quer que aconteçam, devem nos inquietar, ferir e ser objeto de reflexão. A Igreja, à semelhança das manifestações do Deus libertador do Êxodo deve também continuar sensível aos mais variados clamores humanos: deve vê-los, ouvi-los, aproximar-se deles, senti-los, descer ao seu encontro e tomar iniciativas pastorais estimulando processos de transformação da realidade.
Ai de nós se um dia não formos mais sensíveis e capazes de ouvir os sussurros dos humilhados e de oferecer a eles nossa compreensão e compaixão. George Floyd sussurrou “não consigo respirar” e Jesus “tenho sede”! Com esses gemidos de dor ambos revelaram o radical estado de negação do básico das necessidades humanas.
Somos chamados a consolidar em nós convicções éticas e a assumir compromissos pastorais que evidenciem, como Igreja e pastorais específicas, a nossa luta pela transformação das estruturas de violência deste mundo promovendo o Reino de Deus. George Floyd está entre nós de muitos modos e com diversas aparências; ele se faz presente nas áreas de ocupação entre os sem tetos, nos pobres excluídos do bem comum, nos indígenas violentados, nos moradores de rua, nos encarcerados, nos doentes sem atendimento, nos migrantes sem amparo, nas mulheres violentadas, no Estado saqueado pela corrupção, etc. Nesses e em tantos outros sujeitos, Cristo é estrangulado todos os nossos dias. Jesus nos alerta: ”bem-aventurados os que tem fome e sede de justiça porque serão saciados” (Mt 5,6).
PARA A REFLEXÃO PESSOAL:
- Você tomou conhecimento dos fatos mencionados?
- O que você sentiu ao contemplar a imagem humilhante de Derek sobre George?
- Que mensagens e compromissos podemos colher desse fato?
POR Dom ANTÔNIO DE ASSIS RIBEIRO, SDB
Bispo Auxiliar de Belém - PA e Secretário Regional da CNBB Norte 2