O bispo prelado do Marajó-PA, dom Evaristo Pascoal Spnegler, esteve participando entre os dias 25 e 27 de fevereiro, do Seminário preparatório dos Bispos da Amazônia em vista do Sínodo para a Amazônia. Na ocasião, o prelado apresentou o seguinte artigo:
Quero iniciar retomando as palavras do Papa Francisco na Laudato Si’: “A ecologia estuda as relações entre os organismos vivos e o meio ambiente onde se desenvolvem. E isso exige que se pare para pensar e discutir acerca das condições de vida e de sobrevivência de uma sociedade, com a honestidade de pôr em questão modelos de desenvolvimento, produção e consumo. Nunca é demais insistir que tudo está interligado” (n. 138). É no âmbito deste paradigma em que “tudo está interligado” que vou considerar a relação entre ecologia, economia e política, visto que “a ecologia humana é inseparável da noção de bem comum” (LS, 156).
- A política enredada nas malhas de uma “economia que mata”
“Essa economia mata”, afirma de maneira contundente o Papa Francisco na Evangelii Gaudium n. 53. Trata-se de uma “economia da exclusão” (n.53-54) caracterizada pela “nova idolatria do dinheiro” (n. 55-56), criando uma
situação em que o “dinheiro governa em vez de servir” (n. 57-58) e “a desigualdade social gera violência” (n. 59-60).
A economia é aquela atividade humana pela qual, interagindo e utilizando racionalmente dos bens e serviços naturais, garantimos nossa sobrevivência, abertos à comunidade de vida e às gerações futuras. O drama da economia atual é que o sistema financeiro passou a ocupar todos os espaços. De uma economia de mercado passamos para uma sociedade de mercado. Essa é a grande transformação, das maiores e mais perigosas da história. Passamos de uma sociedade com economia de mercado para uma sociedade dominada pelo mercado. Todas as atuais decisões políticas visam favorecer as demandas do Mercado. Nesse contexto, tudo virou mercadoria, desde os bens naturais, as relações humanas e até as coisas mais sagradas da religião. De tudo se pode obter lucro, tudo pode ser levado ao mercado, e no mercado tudo é negociável. Esse tipo de economia, hoje mundializado, transformou o planeta Terra num grande mercado. Nele tudo está à venda. A Terra vem sendo submetida a uma exploração de todos os seus ecossistemas em função do enriquecimento de alguns e do empobrecimento de bilhões de pessoas. Segundo relato da ONG Oxfan 2019, 26 indivíduos possuem riqueza igual a 3,4 bilhões de pessoas.
Por exemplo, algo pensado no Brasil para preservação ambiental, o Cadastro Ambiental Rural (CAR), também passou a ser usado para fins comerciais. O chinês Lap Chang cadastrou um CAR sobre uma área de 58 mil hectares, no Marajó, território
da minha Prelazia, onde vivem povos tradicionais. Em função disso, vendeu crédito de carbono para uma empresa inglesa, no valor de mais de 200 mil dólares.
Essa economia em que tudo virou mercado produz duas funestas injustiças. Uma social, produzindo incomensurável pobreza e miséria; e outra, uma injustiça ecológica, dizimando os bens e serviços naturais, muitos deles não renováveis. Por esse motivo, tem razão o Papa Francisco quando afirma de maneira precisa: “Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise sócio-ambiental. As diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza” (LS, 139).
De fato, a economia atualmente é dominada pela economia de acumulação desenfreada e pelo mercado financeiro. Organizou-se de tal forma a economia que beneficia os mais ricos em detrimento dos mais pobres. Na esteira da Doutrina Social da Igreja somos desafiados a buscar uma política de participação de todos e para todos, e também para com a natureza. A ecopolítica tem por escopo organizar a sociedade e a distribuição do poder de forma a implementar estratégias de sustentabilidade para garantir a todos o suficiente e o decente para viver. Isso supõe pensar a política, no sentido dos documentos sociais da Igreja, como a busca comum do bem comum. Contudo é necessário incluir nesse bem
comum não apenas os seres humanos, mas toda a comunidade de vida.
Declarando que “o atual sistema mundial é insustentável” (n. 202), o Papa Francisco, por 35 vezes na Laudato Si’, conclama para “novos estilos de vida” (n. 163; 194 passim) e novas formas de consumo de sobriedade compartilhada. É necessário e urgente a construção de um paradigma de desenvolvimento alternativo ao atual modelo hegemônico. Trata-se de
conversão do atual modelo de desenvolvimento global. O modelo alternativo de desenvolvimento global deverá considerar o meio ambiente como um bem coletivo, a defesa do trabalho e dos povos originários, entre eles os indígenas da Amazônia, o papel dos movimentos sociais e das organizações da sociedade civil.
Sem negar os avanços da tecnociência na melhoria das condições de vida e do bem-estar das pessoas, não podemos nos deixar dominar e ser controlados por ela. A ciência, a tecnologia, assim como a economia, deve estar a serviço da vida, e não impor o ritmo à vida.
- Ecologia, economia e política na região amazônica brasileira
Desde o período da invasão dos ibéricos, a região amazônica se encontra à mercê de políticas coloniais. Entre os séculos XVI-XIX, o colonialismo extrativista teve fortes incidências sobre povos autóctones e bens naturais mediante uma injusta expropriação. E nos séculos posteriores, com os Estados modernos, práticas e mentalidades colonialistas continuam mediante a exploração de populações, culturas e territórios dessa imensa região. Há séculos, distintas formas de exploração da Amazônia vêm sendo produzidas e, para a fatalidade das suas populações, todas elas com interesses colonizadores que se manifestam mediante dois expedientes: exploração de sua população e redução da região a mera reserva de “recursos”
naturais, como território a ser conquistado, explorado e comercializado para a obtenção de lucros.
A Amazônia já resistiu a grandes projetos, de monocultivos e de ocupação. Falando do Brasil, em 1926, Henry Ford comprou 3 milhões de hectares de terra ao longo do rio Tapajós, contratou mais de 3.000 operários, derrubou a mata e plantou 70 milhões de mudas de seringueira para extrair borracha. Um fungo invisível, com enorme capacidade de multiplicação, fez fracassar o projeto. O monocultivo, mesmo sendo de uma espécie amazônica, foi rejeitado pela floresta.
Em 1967, Daniel Keith Ludwig montou um projeto milionário junto ao rio Jari, numa área de 3,6 milhões de hectares para
produção de celulose com espécies de outras regiões, e agropecuária. A floresta resistiu e novamente um fungo foi responsável pelo fracasso de 22 empresas envolvidas no projeto.
Em 1975, a Volkswagen desmatou 55.000 hectares usando bombas de napalm e desfolhantes químicos. Teve grandes prejuízos e abandonou o projeto. A natureza amazônica resistiu e resiste incansavelmente. A prepotência humana
teve que se curvar e se humilhar muitas vezes à grandeza e à força do bioma amazônico. Contudo, hoje, os ataques são mais graves, porque os ataques são muitos, simultâneos, de muitas frentes e com grandes tecnologias. São megaprojetos de
mineração, energia, petróleo, agricultura, pecuária, madeireiras, infra-estrutura, como hidrovias, rodovias, ferrovias e portos. São projetos de governos e de grandes conglomerados econômicos e de diversos países.
Trata-se a Amazônia como se fosse o celeiro do mundo, onde se pode retirar ou produzir o que quiser. Isso não é verdade. A Amazônia é um bioma frágil que tem seus próprios mecanismos internos de sobrevivência e resistência. Outros consideram ainda a Amazônia como o pulmão do mundo, como se fosse uma grande fábrica de oxigênio. Na verdade, a floresta é um grande equilíbrio dinâmico, no qual tudo é aproveitado e continuamente reciclado. O oxigênio que ela produz, ela mesmo consome. Mas ela funciona como um grande filtro que absorve dióxido de carbono, o principal gás do efeito estufa, um dos fatores responsáveis pelo aquecimento global e das mudanças climáticas. Caso a floresta seja derrubada, seriam liberados para a atmosfera cerca de 50 bilhões de toneladas de carbono por ano, que a floresta, em pé, mantém sequestrados. A derrubada provocaria uma dizimação em massa. Outro fator é que a floresta é importante para o equilíbrio da umidade e das chuvas que sustentam a própria floresta. A floresta sustenta a chuva e a chuva sustenta a floresta. Além disso exporta umidade, via aérea, para outros biomas.
Vigoram hoje, na Amazônia, dois modelos de desenvolvimento. Um é predatório, da extração de madeira, da mineração, do petróleo e energia, da pecuária, do monocultivo, que tem como consequências o desmatamento (20% da floresta já estão desmatados), concentração de renda, trabalho escravo, envenenamentos do solo e das águas, diminuição das chuvas (nas áreas desmatadas a estação seca se prolonga num ritmo de seis dias a cada dez anos), conflitos de ocupação com a expulsão dos povos da floresta, desrespeito às leis, morte de lideranças, ambientalistas e agentes de pastoral.
O outro modelo é o socioambiental, ecológico, direcionado aos povos da floresta. Tem como consequência a redistribuição de renda, a preservação da floresta e da biodiversidade, a socialização da terra e dos recursos, a distribuição de renda, a preservação de populações tradicionais, a fixação do “homem” na floresta, e um mercado promissor de frutas, cocos, artesanatos, polpas, fitoterápicos, óleos, castanhas, ecoturismo, entre outros. Este modelo deve ser fortalecido pelos nossos projetos pastorais. Ainda é um desafio estudar e conhecer toda a biodiversidade e o bioma amazônico. Bem dizia Chico Mendes, o mártir por defender a floresta, assassinado em 22 de dezembro de 1988: “A floresta em pé é mais produtiva do que a floresta tombada”. Ou, como diziam os seringueiros da Amazônia, e tantas vezes repetiu a Ir. Dorothy Stang, também mártir, assassinada em 12 de fevereiro de 2005 por defender os povos da floresta: “A morte da floresta é o fim da nossa vida”.
Para o modelo predatório, a Amazônia tem tudo o que o mercado precisa para manter um crescimento linear e constante, e tudo em abundância: biodiversidade, terras, água, floresta, petróleo, madeira, minérios, fontes de energia, que são de fácil acesso. E é assim que ouvimos falar da Amazônia como a última fronteira do agronegócio e da mineração. Essa economia predatória não poupa nem as pessoas. Tráfico de pessoas, exploração de mão de obra infantil, exploração sexual, são comuns na Amazônia. A economia transforma em mercadoria não apenas os corpos, mas explora e manipula sentimentos, sonhos, desejos, e a confiança das pessoas, seduzidas por falsas e enganosas promessas. Aqui, Vossa Eminência Cardeal Baldisseri, eu abro um parêntesis para dizer que trago um apelo de parte da Igreja da Amazônia, que junto com diversas organizações da sociedade civil organizada atuam na promoção e defesa dos direitos de crianças e adolescentes. Eles solicitam ao Sínodo para a Amazônia um olhar especial e misericordioso para a problemática da violência sexual contra crianças e adolescentes, sobretudo nas áreas dos grandes projetos econômicos presentes na região.
A Amazônia não
precisa ser conquistada, nem desbravada, precisa ser respeitada. O sistema amazônico não funciona nos moldes de competição, funciona nos moldes de cooperação, como todo o sistema Terra. A questão não está em conquistar a Amazônia,mas em conviver com a Amazônia. A política deveria estar a serviço da boa convivência social e da boa convivência ambiental, mas ela prefere estar a serviço da economia. Podemos aprender das populações tradicionais da Amazônia. Há vestígios de presença humana na Amazônia há pelo menos 12.000 anos. Populações tradicionais desenvolveram grandes e complexas sociedades. Em períodos mais recentes chegaram outros habitantes, que também foram acolhidos pela floresta. Os povos da floresta não são ingênuos nem ignorantes.
Como seres humanos, eles interagiram com o seu meio. Têm uma sabedoria, uma cultura, convivem com a floresta, interferem na floresta, vivem da floresta e das águas. Povos tradicionais e floresta se condicionam mutuamente, criaram relações e desenvolveram uma florestania, numa teia intrincada de reciprocidade, intercâmbio e cumplicidade. Isso também é política, ou melhor, eco-política, eco-logia e eco-nomia. Eco do grego oikos lar, casa, como insiste o Papa Francisco, “nossa casa comum”. Os povos da floresta, a veem como algo vivo, um sujeito, parte da comunidade que deve ser
respeitada. Ao contrário, a Cultura Ocidental Moderna vê na floresta e no imenso território apenas um objeto, algo a ser conquistado, manipulado, transformado em matéria prima para ser explorada, negociada, consumida, usada e descartada.
Já não podemos confiar na política vigente. Ela é submissa e serviçal ao grande capitale aos megaprojetos para a Amazônia. Faz isso sem ética e sem escrúpulos. Já não podemos confiar na economia de mercado. Ela é insaciável e transforma tudo em mercadoria. Talvez tenhamos que ouvir mais a ciência, porque hoje são os cientistas que nos advertem sobre os riscos que corremos, inclusive de autodestruição, em consequência desse modelo de uma economia predatória.
Mas antes dos cientistas, pela fé, cada cristão é convidado a assumir a defesa da casa comum, porque reconhece tudo como criatura de Deus. Há oito séculos, São Francisco de Assis cantava louvores a Deus, sentindo-se irmão de toda natureza criada. Louva a Deus pela Terra, “Irmã e Mãe, que nos sustenta e governa”. Essa percepção está em profunda comunhão com a cosmovisão de povos originários da América, que chamam a terra de “Pachamama”, a grande mãe.
As florestas são um fator importante na terra, para o equilíbrio dos climas, temperatura e das condições favoráveis à vida, entre elas a vida humana. As florestas refrescam a terra. Os cientistas dizem que a Terra precisa conservar pelo menos 50% de suas florestas nativas para manter o clima e o ambiente favorável à vida humana. As florestas estão ameaçadas. Hoje só restam preservadas 22% das florestas; menos da metade do que o postulado como necessário. A Amazônia representa 1/3 de todas as florestas que ainda existem. Daí a importância da Amazônia. É urgente respeitá-la, preservá-la e cuidá-la.
Conclusão: a utopia vencerá
A compreensão da Terra como Casa Comum deveria oferecer a base para políticas globais de controle do aquecimento global, das mudanças climáticas, da preservação das florestas, do cuidado da casa comum e o limite para a economia de mercado. Tenho suspeitas de que nem os economistas globais, nem os políticos nacionais serão capazes de fazer isso. Mas tenho certeza que os povos da floresta, os povos originários, com a proposta do “bem-viver” e as comunidades dos discípulos de Jesus, com a proposta do Reino de Deus, junto com outros aliados que sabem que a Amazônia é criação de Deus, serão capazes. Isso pode parecer um sonho, mas são os sonhos que alimentam as utopias. Nós sonhamos com a utopia do Reino anunciado por Jesus. Como diz uma canção de nossas Comunidades: “Sonho que se sonha só, pode ser pura ilusão. Sonho que se sonha juntos, é sinal de solução. Então, vamos sonhar, companheiros, sonhar ligeiro, sonhar em mutirão”.
DOM EVARISTO PASCOAL SPENGLER, ofm
Bispo Prelado do Marajó - PA