“Eu lhes dei a tua palavra, mas o mundo os odiou, porque eles não são do mundo, como eu não sou do mundo. Eu não rogo que os tires do mundo, mas que os guardes do maligno. Eles não são do mundo, como eu não sou do mundo. Consagra-os pela verdade: a tua palavra é a verdade” (Jo 17,14-17). A Igreja de Cristo, constituída por seus discípulos, chamados a estarem no mundo sem serem do mundo, deve conviver com as pessoas de cada tempo, mantendo-se coerente com a verdade, a caridade e a misericórdia. Cabe-lhe ser sal, luz e fermento em meio a situações desafiadoras. O Evangelho (Cf. Lc 18,1-8) oferece uma parábola contada por Jesus, com personagens provocadoras, um juiz injusto e corrupto e uma pobre viúva, sendo que o Senhor propõe um verdadeiro salto qualitativo, incutindo-nos o valor da vida de oração, com a qual temos a certeza dos frutos prometidos, mesmo quando tudo pareça turvado por nuvens escuras e ameaçadoras.

Há poucos dias a Igreja celebrou a memória de São João XXIII, o Papa que convocou, abriu e presidiu o início do Concílio Vaticano II. Como estamos preparando um ano inteiro dedicado à redescoberta do Concílio e de seus Documentos, fomos procurar o Discurso de abertura daquele extraordinário evento, encontrando luminosas indicações para estar diante dos desafios atuais (Cf. AAS 54 – 1962, 786-787, 792-793), do qual respigamos palavras cheias de sabedoria! Optamos por trazê-las quase integralmente para nossa vida e ação!

“O grande problema, proposto ao mundo, continua o mesmo. Cristo sempre a brilhar no centro da história e da vida; os homens ou estão com ele e com a sua Igreja, e então gozam da luz, da bondade, da ordem e da paz; ou estão sem ele, ou contra ele, e deliberadamente contra a sua Igreja: tornam-se motivo de confusão, causando aspereza nas relações humanas, e perigos contínuos de guerras fratricidas. Ferem nossos ouvidos sugestões, ardorosas sem dúvida no zelo, mas não dotadas de grande sentido de discrição e moderação. Elas não veem senão prevaricações e ruínas; vão repetindo que a nossa época, em comparação com as passadas, foi piorando; e portam-se como quem nada aprendeu da história, que é também mestra da vida, e como se nos tempos precedentes tudo fosse triunfo completo da ideia e da vida cristã, e da justa liberdade religiosa. Parece-nos que devemos discordar desses profetas da desventura, que anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo. A Providência está nos levando para uma nova ordem de relações humanas, que, por obra dos homens e o mais das vezes para além do que eles esperam, mesmo as adversidades humanas, dispõe para o bem maior da Igreja”.

Continua o Papa: “É fácil descobrir esta realidade, se se considera com atenção o mundo hodierno, tão ocupado com a política e as controvérsias de ordem econômica, que já não encontra tempo de atentar em solicitações de ordem espiritual, de que se ocupa o magistério da Igreja. Este modo de proceder não é certamente justo, e com razão temos de desaprová-lo; não se pode, contudo, negar que estas novas condições da vida moderna têm, pelo menos, esta vantagem de ter suprimido aqueles inúmeros obstáculos, com os quais, em tempos passados, os filhos do século impediam a ação livre da Igreja. De fato, basta percorrer a história eclesiástica, para verificar que os próprios Concílios, uma sucessão de verdadeiras glórias para a Igreja Católica, foram muitas vezes celebrados com alternativas de dificuldades gravíssimas e de tristezas, por causa da intromissão indevida das autoridades civis, que, propunham-se, às vezes, proteger a Igreja; mas, as mais das vezes, isto não se dava sem danos e perigo espiritual, porque procediam segundo as conveniências da sua política interesseira e perigosa”.

“O Senhor disse: ‘Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça’ (Mt 6, 33). Esta palavra exprime em que direção devem mover-se os nossos pensamentos e as nossas forças; não devemos esquecer, porém, as outras palavras desta exortação do Senhor, ‘e todas estas coisas vos serão dadas por acréscimo’ (Mt 6, 33). Na realidade, sempre existiram e existem na Igreja, os que, embora procurem com todas as forças praticar a perfeição evangélica, não se esquecem de ser úteis à sociedade. Mas, para que esta doutrina atinja os múltiplos níveis da atividade humana, que se referem aos indivíduos, às famílias e à vida social, é necessário que a Igreja não se aparte do patrimônio sagrado da verdade e, ao mesmo tempo, deve olhar para o presente, para as novas condições e formas de vida introduzidas no mundo hodierno, que abriram novos caminhos ao apostolado católico”.

Atualíssimas as palavras que se seguem: “A Igreja não assistiu indiferente ao admirável progresso das descobertas da humanidade, e não lhes negou o justo apreço, mas, seguindo estes progressos, não deixa de avisar os homens para que, bem acima das coisas sensíveis, elevem os olhares para Deus, fonte de toda a sabedoria e beleza; e eles, aos quais foi dito: ‘Submetei a terra e dominai-a’ (Gn 1, 28), não esqueçam o mandamento gravíssimo: ‘Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás’  (Mt 4, 10; Lc 4, 8), para que não suceda que a fascinação efêmera das coisas visíveis impeça o verdadeiro progresso”.

Acolhamos no coração a força das palavras de um santo: “A Igreja sempre se opôs a estes erros, e até os condenou com a maior severidade. Agora, porém, a esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade. Julga satisfazer melhor às necessidades de hoje mostrando a validez da sua doutrina do que renovando condenações. Não quer dizer que faltem doutrinas enganadoras, opiniões e conceitos perigosos, contra os quais nos devemos prevenir e que temos de dissipar; mas estes estão tão evidentemente em contraste com a reta norma da honestidade, e deram já frutos tão perniciosos, que hoje os homens parecem inclinados a condená-los, em particular os costumes que desprezam a Deus e a sua lei, a confiança excessiva nos progressos da técnica e o bem-estar fundado exclusivamente nas comodidades da vida. Eles se vão convencendo sempre mais de que a dignidade da pessoa humana, o seu aperfeiçoamento e o esforço que exige é coisa da máxima importância. E o que mais importa, a experiência ensinou-lhes que a violência feita aos outros, o poder das armas e o predomínio político não contribuem em nada para a feliz solução dos graves problemas que os atormentam. Assim sendo, a Igreja deseja mostrar-se mãe amorosa de todos, benigna, paciente, cheia de misericórdia e bondade também com os filhos dela separados. Ao gênero humano, oprimido por tantas dificuldades, ela diz, como outrora Pedro ao pobre que lhe pedia esmola: ‘Eu não tenho nem ouro nem prata, mas dou-te aquilo que tenho: em nome de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e anda’ (At 3, 6). Quer dizer, a Igreja não oferece riquezas caducas, não promete uma felicidade só terrena; mas comunica-lhes os bens da graça divina, que, elevando os homens à dignidade de filhos de Deus, são defesa e ajuda para uma vida mais humana; abre a fonte da sua doutrina vivificante, que permite aos homens, iluminados pela luz de Cristo, compreender bem aquilo que eles são na realidade; a sua excelsa dignidade e o seu fim; e mais, por meio dos seus filhos, estende a toda parte a plenitude da caridade cristã, que é o melhor auxílio para eliminar as sementes da discórdia; e nada é mais eficaz para fomentar a concórdia, a paz justa e a união fraterna”.