
por Dom Antônio de Assis Ribeiro
Bispo Auxiliar na Arquidiocese de Belém do Pará
Introdução
Outro princípio fundamental que rege a Doutrina Social da Igreja é a inseparabilidade entre Caridade e Justiça. Diz o salmo 85,11: “amor e verdade se encontram, justiça e paz se abraçam”. Deus que é amor e misericórdia, é também justiça e verdade.
A Sagrada Escritura nos confirma que o mistério do amor (Caridade) divino envolve múltiplas virtudes, sem limites numa perfeita harmonia. Afirma o salmista: “Ó Senhor, vós sois bom e clemente, sois perdão para quem vos invoca” (Sl 86,5); “sois clemente e fiel, sois amor, paciência e perdão” (Sl 86,15). “Sim, é bom o Senhor e nosso Deus, sua bondade perdura para sempre, seu amor é fiel eternamente” (Sl 100,5). O Deus revelado em Jesus de Nazaré é misericordioso, bondoso e compassivo.
A prática da Doutrina Social da Igreja é testemunho da promoção do amor e da justiça inseparavelmente em todos os contextos e para todas as pessoas em qualquer situação existencial. A luta da Igreja pela promoção da justiça social é consequência da caridade. Bem como, a prática da Caridade exige a promoção da justiça.
1.Deus é amor pleno
As diversas traduções da Sagrada Escritura nos mostram que os termos “amor” e “Caridade” têm o mesmo significado e, ambos englobam o mesmo conteúdo quando se referem a Deus. A palavra “charitas” é a tradução latina do “ágape” grego, que significa amor de doação, livre, desinteressado, generoso, gratuito, eterno, pleno, que se sacrifica pela vida do outro. Assim é o amor com o qual Deus nos ama. Esse foi o amor testemunhado por Jesus Cristo em prol da Salvação da humanidade.
A novidade do Amor revelado em Jesus Cristo, não se contrapõe ao amor humano (bem querer), mas o supera radicalmente e apresenta-se com um horizonte universal de expressões, conteúdos, dinamismos, sem fronteiras, manifestando a infinitude do próprio Deus. O modo de agir de Deus para com os homens (e o posicionamento do discípulo de Cristo diante do seu próximo) é expresso com o termo Caridade. A Caridade não é um gesto isolado de beneficência, mas é o permanente compromisso de cuidado, proteção, justiça, solidariedade, paz, amparo, perdão, compaixão, fraternidade, serviço, respeito, verdade etc.
2. Não há Caridade sem justiça
Quando uma pessoa diz que ama, mas é negligente e trata com severidade o amado, dificilmente esse amor é crível e aceito. Quem ama não pode ser injusto! Na Caridade não há espaço para a violência e nenhuma forma de injustiça. Quem quer ser caridoso, deve ser necessariamente justo. A Caridade autêntica se manifesta numa pluralidade de modos e atitudes. Essa inclui virtudes, palavras, gestos, silêncio, capacidade de adaptação, garantias, segurança, apoio, fidelidade…
Não há, portanto, Caridade sem cuidado, sem a preservação do outro, sem respeito por aquilo que é e seus direitos; a justiça é parte integrante da Caridade! Ela se insere na dimensão das relações. A vivência da Caridade se traduz numa positiva relação com os outros e por ser profundamente vinculada à Justiça não tolera a negação daquilo que é necessário ao outro.
A lei que defende a morte do culpado é injusta e contraditória. O amor de Deus não tolera o massacre, o sangue derramado, o direito ofendido, a indiferença política, a escravidão gratuita. Assim diz o texto bíblico: «Eu vi a aflição do meu povo no Egito e ouvi o seu grito de dor por causa dos seus opressores. Conheço muito bem as suas angústias…» (Ex 3,7). O amor não tolera a opressão! O foco da justiça divina é a salvação: “Não sinto nenhum prazer com a morte do injusto. O que eu quero, é que ele mude de comportamento e viva” (Ez 33,11).
A meta da justiça não é a morte, mas é a preservação e promoção da dignidade humana. Eis porque a Doutrina Social da Igreja rejeita a pena de morte. A autêntica justiça deve sempre defender a vida. Por isso, na perspectiva da caridade, não basta o cumprimento das leis. A Caridade Divina promove a integridade da vida, defende o direito, recupera a dignidade, conduz à libertação.
No Novo Testamento a característica da Caridade torna-se mais radical ainda, até ao dar a vida por quem se ama. A Caridade cristã exige partilha de bens, solidariedade para com o necessitado, tolerância (cf. Rm 12,9-21); se retoma o tema da relação culto-justiça (cf. Is 1,10-17), sobretudo, quando Jesus entra em conflito com a hipocrisia dos fariseus. Só ama a Deus quem pratica a Justiça: vivência do perdão! O Amor é um dinamismo, um caminho de atitudes que zela pela vida.
A Caridade sem a justiça é vazia, destituída de significado; a fé para ser autêntica deve expressar-se através das obras, na nossa relação com os outros (cf.Tg 2,14-17). A vivência do Amor de Deus se torna inexpressiva para alguém que, tendo posse de bens e vendo a necessidade do seu próximo, não partilha. Por isso é necessário a Justiça (cf. 1Jo 3,17-18; Mt 25,31-46). A proclamação da Caridade sem a prática da justiça é falsa e destituída de conteúdo.
A partir desse horizonte da caridade, conectado à justiça, a Igreja não defende a esmola, mas estimula a promoção da cultura da solidariedade e o permanente compromisso de promoção da dignidade humana.
A Caridade, não se reduzindo à esfera individual, zela pela justiça social, estimula o surgimento de estruturas institucionais éticas; inspira a busca incessante da Civilização do Amor e da Paz. A Caridade, é profundamente crítica diante das raízes dos males sociais e tem como meta a transformação da sociedade promovendo a dignidade de vida para todos, como sinal do Reino de Deus. A Caridade tem uma dimensão que ultrapassa as fronteiras terrenas. Por isso a vivência da verdadeira caridade, ampla e profunda, como amor sem fronteias, exige uma profunda consciência de fé. Deus é caridade! A caridade, portanto, é experiência de Deus que tem a sua plenitude na vida eterna.
PARA A REFLEXÃO PESSOAL:
- Como podemos promover a superação da Caridade como puro gesto de beneficência?
- Como podemos superar a hipocrisia do culto sem a Caridade?
- O que significa afirmar que o amor “não se alegra com a injustiça”? (1Cor 13,6).
Artigos Anteriores
Dom Antônio Assis: EUCARISTIA E COMPROMISSO DE VIDA
Introdução Celebrando solenemente a Festa de Corpus Christi somos convidados a aprofundar o sentido e as consequências do Sacramento da Eucaristia em nossa vida. Para sermos mais estimulados consideremos as preocupações do apóstolo Paulo presentes na primeira...
IGREJA NA AMAZÔNIA – 1972: ENCARNAÇÃO NA REALIDADE E EVANGELIZAÇÃO LIBERTADORA
Por Dom Antônio Assis Bispo de Belém Introdução De 06-09 de maio de 2022 aconteceu em Santarém o IV Encontro da Igreja Católica na Amazônia Legal, para a celebração dos 50 anos do Encontro dos bispos da Amazônia acontecido na mesma cidade de 24-30 de maio de 1972. Ao...
DOM ANTÔNIO ASSIS: O ESPÍRITO SANTO DEFENDE, EDUCA, REJUVENESCE A IGREJA
Introdução A celebração da Solenidade de Pentecostes nos estimula a revisitar e meditar o mistério da identidade do Espírito Santo e sua missão. É Ele quem impulsiona a Igreja e a mantém em permanente estado de missão para ir ao encontro das Galileias nos tempos...
DOM ANTÔNIO ASSIS: PASTORAL JUVENIL E SINODALIDADE.
Introdução O tema sinodalidade tem sido objeto de constante e de mais intensa reflexão nos últimos anos. Na Constituição Apostólica Episcopalis Communio o Papa Francisco afirma que Cristo fala através de todo o povo de Deus, na totalidade dos fiéis, que receberam a...
DOM ANTÔNIO ASSIS: A EDUCAÇÃO CATÓLICA E PREVENTIVIDADE (Parte 20 – Final)
Introdução O conceito de “educação preventiva” foi gestado a partir da reflexão crítica sobre muitos dramas humanos começando na Europa. No final do século XIX havia de modo geral em alguns países europeus uma grande preocupação para com a assimilação de lições...
DOM ANTÔNIO ASSIS: a educação católica no ensino superior (Parte 19).
A EDUCAÇÃO CATÓLICA NO ENSINO SUPERIOR (Parte 19) Introdução O perfil do Ensino Superior Católico está vinculado ao conceito de educação que a Igreja traz consigo, focado na dignidade da pessoa, na ciência em prol do desenvolvimento humano integral, inspirado nas...
Dom Antônio: Educação Católica: A DIMENSÃO ÉTICA DA EDUCAÇÃO CATÓLICA (Parte 18)
Introdução A identidade da educação católica traz consigo um modo próprio de se expressar; uma das suas mais profundas características é a dimensão ética. Na verdade, há uma natural relação entre educação e ética porque o desenvolvimento humano pressupõe...
Dom Antônio: Educação Católica: A ESCOLA CATÓLICA E A PROMOÇÃO DAS SADIAS RELAÇÕES HUMANAS (Parte 17)
Introdução O contexto sociocultural em que vivemos desafia profundamente a educação católica para que não perca o seu fervor, brilho e identidade. O forte pessimismo nas múltiplas dimensões da vida pessoal e da sociedade constituem grandes desafios a serem...
Dom Antônio: Educação Católica: O Pacto Educativo Global e o impacto social da educação (Parte 16)
Introdução Continuemos a nossa reflexão sobre o Pacto Educativo Global proposto pelo Papa Francisco. Esse desafio nos estimula a aprofundar a dimensão social da educação que brota da consciência da missão de promoção do Reino de Deus. A educação católica tem um...
Dom Antônio: Educação Católica: o Pacto Educativo Global e seus horizontes (Parte 15)
Introdução A Igreja, desde a sua fundação, sempre se mostrou muito sensível para com a educação. O ser humano é vocacionado, ou seja, chamado ao desenvolvimento integral e sem a promoção da educação, isso não é possível. A Igreja é educadora e sempre...
DOM ANTÔNIO ASSIS:EDUCAÇÃO CATÓLICA: Educar para o humanismo solidário (Parte 14)
Introdução Continuemos a nossa reflexão sobre o documento “Educar para o humanismo solidário”. Recordemos as principais ideias apresentadas anteriormente para podermos assim, continuar a reflexão sobre o referido texto. A base inspiradora desse documento é a...
DOM ANTÔNIO ASSIS:EDUCAÇÃO CATÓLICA: Educar para o humanismo solidário (Parte 13)
Introdução Em 2017, por ocasião da celebração dos 50 anos da encíclica Populorum Progressio (PP), sobre o desenvolvimento humano dos povos, escrita pelo Papa Paulo VI em 1967, a Congregação para a Educação Católica lançou um documento com o título...
DOM ANTÔNIO ASSIS: EDUCAÇÃO CATÓLICA: O educador, Bom Pastor dos seus educandos (Parte 12)
Introdução Encontramos na Sagrada Escritura uma abundância de referências sobre a figura do pastor e das ovelhas. A economia dos povos da bíblia era baseada na agricultura e na pecuária. Daí se entende a abundância de referências à figura das ovelhas,...
DOM ANTÔNIO ASSIS: EDUCAÇÃO CATÓLICA: Fraternidade e Educação – Texto Base Agir (Parte 11
Introdução A terceira parte do texto-base da Campanha da Fraternidade nos estimula a traduzir em ações concretas as provocações da realidade contida na primeira parte (o Ver) e as inspirações presentes no discernir (II parte). Por se tratar de uma realidade...
DOM ANTÔNIO ASSIS: FRATERNIDADE E EDUCAÇÃO: Texto Base – Discernir (Parte 10)
Introdução O exercício da escuta é importante para a tomada de decisões em nossa vida. Mas para que o discernimento seja seguro, precisamos ser formados, pois a formação nos proporciona a assimilação de critérios e parâmetros que nos possibilitam analisar com...
DOM ANTÔNIO ASSIS: CAMPANHA DA FRATERNIDADE 2022 “Fala com sabedoria, ensina com amor” (Parte 9)
Introdução Estamos iniciando mais um tempo quaresmal e, com ele, somos chamados a promover a Campanha da Fraternidade (CF). O tempo quaresmal nos estimula à conversão, à melhoria de nós mesmos, e isso não é possível sem revermos a qualidade da nossa relação com os...
DOM ANTÔNIO ASSIS: Educação católica – Fundamento Cristológico. Jesus educador, por excelência (Parte 8).
Introdução Continuemos nossa reflexão sobre a identidade da educação católica centrando o nosso olhar sobre a pessoa de Jesus Cristo. O fundamento cristológico é determinante para a educação católica, porque Jesus Cristo é a pedra angular, o Mestre e o Senhor...
DOM ANTÔNIO ASSIS – EDUCAÇÃO CATÓLICA: fundamento bíblico, a contribuição dos profetas (Parte 7)
Introdução Foi muito significativa a contribuição dos profetas para a saúde religiosa, moral e política do povo de Israel. Eles foram profundamente sensíveis aos temas sociais; não só denunciaram problemas, mas foram propositivos nos ensinamentos, alertando,...
DOM ANTÔNIO ASSIS: Educação católica – Fundamento bíblico (parte 6).
Introdução A concepção de educação do ponto de vista bíblico depende do período histórico, do contexto sociocultural e de sujeitos específicos considerando suas responsabilidades. Há uma profunda relação entre a consciência de fé, com seus múltiplos...
DOM ANTÔNIO ASSIS – Educação católica: fundamento ético e antropológico (parte 5).
Introdução Para que possamos compreender a sensibilidade da Igreja Católica para com o mundo da educação precisamos mergulhar no universo da identidade do ser humano: quem é o homem, qual é a sua origem, qual é a sua vocação, em que consiste a sua dignidade, qual é a...