por Dom Pedro José Conti
Bispo da Diocese de Macapá
Ao final de um jantar em um castelo inglês, um famoso ator entretinha os hóspedes declamando textos de Shakespeare. Disse que, a pedido, estava disposto a declamar outro textos. Um tímido padre que estava lá sugeriu de declamar o Salmo 23(22). O ator respondeu que faria isso somente se o padre, depois, também recitasse o mesmo Salmo. O padre, um pouquinho acanhado, aceitou o desafio. O ator interpretou o Salmo maravilhosamente: “O Senhor é o meu Pastor, nada me falta…”. Ao final todos aplaudiram. O padre, então, também começou a recitar as mesmas palavras do Salmo. Quando terminou, não se ouviram aplausos, só um profundo silêncio. Também se viram discretas lágrimas nos rostos de algumas pessoas. O ator, depois de guardar mais um pouco de silêncio, tomou a palavra e disse: – Senhoras e senhores, espero que todos tenham percebido o que aqui se passou nesta noite: eu conhecia as palavras do Salmo, mas este homem conhece o Pastor!
No Quarto Domingo da Quaresma encontramos um trecho do diálogo entre Jesus e Nicodemos que está no 3º capítulo do evangelho de João. É nestes momentos que Jesus abre o seu coração e explica muitas coisas. Ele diz que o Filho do Homem será “levantado” como naquele episódio da serpente de bronze que encontramos no livro dos Números 21,4-9. Quem olhava para a serpente “ardente” era curado das mordidas mortais das cobras. O ser “levantado” é uma clara referência ao levantamento na cruz. Se queremos viver – ou ser salvos – devemos crer em Jesus, o Filho unigênito que o Pai enviou. Ao contrário estaremos na morte – ou condenados. A “boa notícia” é que o Filho do Homem não veio para condenar o mundo, ou seja fazê-lo ou deixa-lo morrer, mas veio para salvá-lo e todos aqueles que nele crer terão a “vida eterna”. O “julgamento” já está acontecendo porque “a luz” – ou seja Jesus – “veio ao mundo, mas os homens preferiram as trevas” (Jo 3,19).
Encontramos aqui algumas das contraposições típicas do Evangelho de João: vida e morte, luz e trevas, salvação e condenação, verdade (bem) e “más ações” e, no “mundo”, aqueles que acreditam e aqueles que se recusam a acreditar. A mensagem do evangelho é um convite à decisão que cada um deve tomar a respeito de Jesus. Como naquele tempo, ainda hoje, ninguém está condenado ou perdido de antemão. A possibilidade de conhecer Jesus e acreditar nele é oferecida a todos, mas alguns dão a preferência as trevas e odeiam a luz. Surge de imediato a pergunta: de qual “vida” Jesus está falando e de qual condenação? Porque com certeza todos nós, acreditando ou não, vamos morrer. É nesta altura que entra em campo a fé no Filho do Homem, não como um seguro contra a morte, porque ele mesmo irá morrer, mas como certeza de uma vida “eterna” que somente Deus pode dar a quem acreditar e confiar nele. O mais importante da questão é entender que o “julgamento” do qual fala o evangelho não acontecerá após a nossa morte e que Jesus não está falando do céu mas desta vida que passa. A fé não serve mais depois desta vida, porque poderemos já estar ou não contemplando as maravilhas de Deus. A fé deve ser agora, já neste mundo, aquela luz necessária para que tomamos a decisão de confiar em Jesus enviado do Pai. A vida “plena”, a comunhão com Deus, no qual resolvemos acreditar, começa aqui, no nosso dia a dia, no nosso agir à luz do bem e da verdade e não na escuridão de más ações que serão desmascaradas. A “vida eterna” ou “vida plena” que Jesus promete a quem acreditar nele, não é questão de duração no tempo, mas de intensidade da fé, da esperança e do amor, que só podem aumentar ao passo que crescemos na familiaridade com ele seguindo o seus passos e atraídos pelo seu exemplo. Conhecer Jesus é muito mais que decorar formulas de fé, saber dar explicações brilhantes ou sustentar debates doutrinais. Qualquer um que tenha lido ou estudado um pouco pode fazê-lo. Crer em Jesus é arriscar sobre a sua palavra. Aprender a recitar um Salmo é fácil, conhecer e confiar no Pastor do qual o Salmo fala, é outra coisa. É uma questão de “vida”.
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