por Assessoria de Comunicação do CIMI
Na última quinta-feira (21), o Supremo Tribunal Federal (STF) encerrou a votação do julgamento do caso que discute o marco temporal para a demarcação de terras indígenas. A tese foi derrotada por nove votos a dois – resultado que reafirma o direito originário dos povos indígenas às suas terras e confirma a inconstitucionalidade do marco temporal.
O processo em questão é o Recurso Extraordinário (RE) 1017365, que tem no centro da disputa a Terra Indígena (TI) Ibirama La-Klãnõ, território do povo Xokleng.
Na sessão, o ministro Luiz Fux acompanhou o voto do relator Edson Fachin, assim como a ministra Cármen Lúcia e a presidenta da Corte, Rosa Weber. O ministro Gilmar Mendes, apesar de longa arguição contra os direitos indígenas, seguiu o voto do ministro Dias Toffoli, apresentado ontem (20), também contrário ao marco temporal.
Além deles, posicionaram-se contra o marco temporal os ministros Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin e Luís Roberto Barroso. Os únicos ministros que se posicionaram a favor da tese ruralista foram Kássio Nunes Marques e André Mendonça, ambos indicados ao STF pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.
Além da decisão positiva para o conjunto dos povos indígenas do Brasil, o povo Xokleng também saiu vitorioso no mérito do processo, tendo garantido seu direito de posse sobre a TI Ibirama La-Klãnõ, localizada em Santa Catarina.
O processo tratava, originalmente, de um recurso movido pelos Xokleng e pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) contra uma decisão de reintegração de posse contrária à comunidade Xokleng.
“Eu fico muito feliz do STF tomar essa decisão, porque na verdade é uma oportunidade de demonstrar que reconhece o direito dos povos indígenas e também do povo brasileiro. Até porque o trabalho que fazemos na área de meio ambiente não é só para o povo indígena, mas para todos os povos do Brasil e todo o povo do mundo”, celebrou Brasílio Priprá, liderança do povo Xokleng.
A vitória foi celebrada pelos quase 600 indígenas de diversas regiões que estavam presentes na mobilização que se formou do lado de fora do STF.
Próximos passos
Além da decisão sobre o marco temporal, cabe ao STF decidir sobre outros pontos que foram trazidos à discussão nos votos dos ministros e ministras e que devem integrar o texto final da “tese” da Corte, que terá caráter vinculante. Esses pontos devem ser dicutidos em uma nova sessão do STF que ocorrerá amanhã (27).
“Na próxima sessão ocorrerá o encerramento da discussão sobre a tese central do julgamento, que deve vincular o Poder Executivo e que vai ser a interpretação final do texto Constitucional”, explica Rafael Modesto dos Santos, assessor jurídico do Cimi e um dos advogados do povo Xokleng.
Entre estes pontos estão a discussão sobre a indenização a proprietários de títulos de boa-fé incidentes sobre terras indígenas e sobre o caráter de “direito fundamental” – e, portanto, de cláusula pétrea, que não pode ser alterada por propostas legislativas – dos direitos garantidos aos povos indígenas nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal.
“Um elemento central importante também é a possibilidade de redimensionamento de terras indígenas demarcadas com um tamanho menor, com vício no procedimento. Então, aqueles povos que não tiveram todo o território de ocupação tradicional devolvido por processo de demarcação terão essa possibilidade, que já existe, garantida e reafirmada pela Corte”, explica Modesto.
Luta histórica
O processo cujo desfecho está próximo do fim teve sua repercussão geral reconhecida pela Corte quatro anos atrás, em 2019 – o que significa que a decisão fixará o entendimento da Corte sobre o tema e servirá de referência para os demais casos envolvendo demarcações de terras indígenas.
Durante este período, durante o qual o julgamento foi adiado e interrompido pelo STF diversas vezes, os povos indígenas mantiveram-se mobilizados em defesa de seus direitos constitucionais, acompanhando o desfecho do processo e pressionando por uma resolução.
Na última década, a tese do “marco temporal” e outras tentativas de restringir os direitos temporal dos povos indígenas também foram uma constante em medidas do poder Executivo, como Parecer 001/2017, da Advocacia-Geral da União (AGU), e em projetos legislativos, como o Projeto de Lei (PL) 490/2000, que foi aprovado pela Câmara dos Deputados em maio e tramita no Senado, agora com o número 2903/2023.
No mesmo dia da decisão do STF, senadores ruralistas e ligados a setores econômicos interessados na exploração e na apropriação das terras indígenas, especialmente o setor da mineração, protocolaram a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 48/2023. A proposição busca alterar a Constituição Federal para incluir no artigo 231, que trata dos direitos dos povos indígenas, a tese do marco temporal.
Caso o STF confirme a interpretação de que os direitos indígenas são direitos fundamentais e, portanto, inalteráveis, como votou o relator do caso, ministro Edson Fachin, essas proposições legislativas perdem força.
No âmago da disputa, o processo de repercussão geral e a discussão sobre a territorialidade indígena envolve duas teses principais e opostas: a tese do marco temporal e a tese do “indigenato”.
A primeira busca restringir os direitos territoriais indígenas, ao estabelecer que estes povos só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse em 5 de outubro de 1988 – ou que, naquela data, estivessem sob disputa física ou judicial. Na prática, essa perspectiva ignora o fato de que até 1988 os povos indígenas eram submetidos à tutela do Estado e anistia as diversas violações e violências de que foram vítimas.
A tese do indigenato foi a perspectiva que embasou a redação da Constituição Federal de 1988 e reconhece o direito dos povos indígenas aos seus territórios como um direito originário, que antecede o próprio Estado. Essa interpretação possui um longo histórico de aplicação no Brasil e remonta, como lembrou em seu voto o ministro Cristiano Zanin, ao Alvará Régio de 1680.
“Nós, advogados do povo Xokleng, advogados do Cimi, sempre defendemos a demarcação, o texto constitucional, a vontade do Constituinte de 88 e, por óbvio, a tese do indigenato. E o Supremo, por nove votos contra dois, julga inconstitucional a tese do marco temporal, o que abre caminho para o Poder Executivo cumprir a Constituição e finalizar as demarcações de terras indígenas ainda pendentes”, explica Modesto.