O tema da fome em tempo de Quaresma, numa Campanha da Fraternidade, está sendo tratada pela terceira vez na Igreja no Brasil[1]. É sinal que é uma realidade familiar, comunitária e social para ser enfrentada com ajudas de alimentos para quem tem fome, mas também por políticas públicas por parte dos governos. Jesus disse para os discípulos: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16), impulsionando a eles pela responsabilidade social. Jesus multiplicou os pães a partir dos pães que eram levados pelo publico. É preciso trabalhar pelo flagelo da fome que atinge mais de trinta milhões de pessoas no Brasil.

A realidade da fome estava presente nos padres da Igreja, os primeiros escritores cristãos. Eles a enfrentavam pelas homilias dirigidas ao público, ao povo de Deus, mas, sobretudo por ações concretas que visavam à saída daquela situação da fome. Eles eram muito solícitos pela partilha dos alimentos, para que as pessoas trouxessem para as comunidades e haveria a entrega de alimentos. Veremos a seguir a importância do tema da fome nos padres da Igreja.

São Jerônimo e São João Crisóstomo

O texto base teve presentes as considerações de São Jerônimo, presbítero dos séculos IV e V afirmando que a glória do bispo é ajudar a necessidade dos pobres sendo a ignorância de todo o sacerdote afanar-se, trabalhar ativamente pelas suas riquezas[2]. O nosso tempo exige atitudes de compaixão, solidariedade de uma vida conforme o próprio Cristo[3]. Outro autor da Patrística foi São João Crisóstomo, bispo de Constantinopla dos séculos IV e V afirmando a incoerência das pessoas que participavam na eucaristia na Igreja, pois quando elas saiam da comunidade ao contemplar pobres formando muralhas em ambos os lados, passavam longe sem alguma comoção, pois elas veriam colunas e não corpos humanos, apressando o passo para não ver os pobres[4]. O bispo também dizia que se as pessoas tinham presentes os compromissos advindos da participação da Eucaristia ao afirmar a honra do Corpo de Cristo, o fiel não o desprezaria nos seus membros, isto é, nos pobres que não tem o que vestir e ele não seria honrado no templo com vestes de seda, enquanto ele é abandonado lá fora no frio e à nudez. Qual seria o proveito do fiel estar com a mesa de Cristo coberta de taças de ouro, se ele morre de fome nas pessoas dos pobres? O pobre é também um templo a ser considerado com amor[5]. As considerações destes padres ajudam a viver o seguimento a Cristo junto aos mais necessitados de alimento material e espiritual.

Repartir o pão com o faminto

São Basílio de Cesaréia, bispo, século IV realçou a generosidade de Deus em relação ao cultivo do campo, à agricultura. No entanto da parte do ser humano há a dureza do coração. Porém ele é chamado a dividir o supérfluo entre os indigentes, realizando a palavra do Senhor que pede de seus fiéis não negar um benefício ao necessitado (Pr 3,27). É preciso repartir o pão com o faminto (Is 58,7)[6].

A doação aos pobres

São Basílio também dizia que o pão que a pessoa retinha pertencia à pessoa faminta, o manto que a pessoa guardava no armário era de quem de fato estaria nu; os sapatos que estavam apodrecendo na casa pertenciam ao descalço; o dinheiro enterrado era do necessitado. Muitas coisas poderiam ser feitas para socorrer a quem mais precisa, sobretudo os pobres e os famintos[7]. Percebe-se então a convicção de Basílio em relação à realidade da fome que era necessário realizar ações caritativas para favorecer os pobres e aqueles que passavam a situação da fome.

As palavras do Mestre no sentido pela participação ou não do Reino de Deus

São Basílio também dizia que os sofrimentos dos pobres nos quais as pessoas o socorreram com algum alimento serão lembrados no dia do juízo dado pelo Senhor. Ele dirá que os justos são benditos do seu Pai, tomando posse do Reino preparado para eles desde a criação do mundo, porque ele teve fome e as pessoas deram de comer, teve sede e as pessoas deram de beber, ele estava nu e as pessoas o vestiram (Mt 25,34-36).

O Bispo de Cesaréia também colocou quanto terror, quais trevas envolverão as pessoas ao ouvir a condenação pelo afastamento do Mestre, porque ele teve fome e as pessoas não deram de comer, teve sede e as pessoas não deram de beber, ele estava nu e as pessoas não o vestiram (Mt 25, 41-42. 30. A pessoa egoísta é condenada por não ter feito a partilha, e não ter ajudado a quem mais necessitasse de ajuda sobretudo com a alimentação.[8]

A fome, vergonha, e a maior das desventuras humanas

O Papa Francisco tem presente que a fome não é só uma tragédia, mas é também uma vergonha, porque é provocada por uma distribuição desigual dos frutos da terra, muitas vezes pela falta de investimentos no setor agrícola, mudanças climáticas, aumento dos conflitos em várias regiões do planeta, além das toneladas de alimentos descartados. Ele insiste para não ficar insensíveis diante desta realidade, mas ele convoca todos à responsabilidade comunitária e social[9].

Anteriormente ao Papa Francisco foi São Basílio nesta mesma direção quando ele dizia que a fome é uma enfermidade espantosa, pois ela representa a maior das desventuras humanas; é aquela que possui o fim mais miserável de todas[10]. Ele também fez uma análise das mortes que aconteciam na existência humana; aquelas que se sucediam com a espada em caso de guerra; outras tinham como conseqüência a fé professada e, portanto eram martirizados; outros morriam no fogo ou mesmo sofriam o naufrágio. Todas estas formas de morte, ainda que indesejáveis à vida humana tivessem uma característica própria: a sua rapidez. A fome, ao invés levava consigo uma situação lenta, um sofrimento prolongado. São Basílio chamava-a de doença que se instala no corpo humano de uma forma escondida, pois ela tem como fim uma morte eminente e sempre em atraso. Ela vai consumindo a umidade natural, esfriando a temperatura corpórea. Tudo isto leva à diminuição do peso da pessoa, e atenua as suas forças de uma forma gradativa[11].

A misericórdia para com os pobres

São Gregório de Nazianzo, bispo de Constantinopla, século IV ao fazer uma interpretação sobre a bem-aventurança da misericórdia de Jesus (Mt 5,7) referia-se ao pobre e ao indigente. Pessoa muito boa é aquela que tem piedade, estenda a mão e o dia todo o justo se compadece e empresta. A pessoa tornar-se-á compassiva, compressiva e assim boa. A benignidade não pode sofrer demora. É preciso repartir o pão com o faminto e aos pobres sem teto para que assim eles e elas entrem na casa. A pessoa que pratica a misericórdia tenha sempre presente a alegria, pois será reduplicado o benefício feito por causa da prontidão, pela bondade. A aurora ficará luzente e a saúde da pessoa depressa surgirá (Mt 5,7; Sl 40,1). Para o bispo, levanta ele uma pergunta: será que a pessoa seguidora do Senhor e da Igreja não desejaria a saúde e a cura?[12].

A ajuda aos pobres

São Gregório, Bispo de Nissa, século IV, irmão de São Basílio e amigo de São Gregório de Nazianzo afirmava a importância da ajuda aos pobres. Ainda que a pessoa dissesse que era pobre, mas ela era aconselhada a dar daquilo que tivesse, pois Deus não quer aquilo que está acima das forças. Porque se alguma pessoa dá um pão, o outro uma roupa, terá como resultado á contribuição de muitos acabando com a desgraça de outros. Assim não será para desprezar os prostrados como indignos de qualquer coisa, pois eles tem valor, porque aquelas pessoas estão revestidas com a face do Salvador[13]

As praças estavam com os pobres

São João Crisóstomo teve presentes as praças cheias de necessitados e de pobres. Ao se aproximar da Igreja recebeu ele uma incumbência para que fosse relatada ao povo de Deus, a vida dos pobres mesmos, habitantes da cidade. Não era tanto pelas palavras mas pela vista dos desventurados e amargurados. O bispo viu logo nas esquinas muitos deitados, uns cobertos de chagas e feridas incuráveis, expondo os males extremos nos membros que seria preciso encobrir por serem purulentos. O bispo considerou ser a última das desumanidades não conversar sobre eles com a caridade do povo de Deus estimulando ações em favor da mesma. É preciso falar sobre a misericórdia para que se fale da caridade em nome do Senhor pelas pessoas mais necessitados, pobres, famintas[14].

A Campanha da Fraternidade 2023 está em unidade com toda a Igreja que reza ao Senhor  para que haja a partilha dos alimentos, vida digna na qual Jesus veio dar para toda a humanidade. Os padres da Igreja trabalharam pela vida de seu povo diante da realidade da fome. Eles concretizaram a palavra de Jesus: “Dai-lhes vós mesmo de comer” (Mt 14,16).

 

[1] A primeira foi em 1975, como tema: “Fraternidade é repartir” e o lema “Repartir o pão”. A segunda foi em 1985 com o lema: “Pão para quem tem fome”. In: CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil / Campanha da Fraternidade 2023. Texto-Base. Brasília: Edições CNBB, 2022, pg. 17.

[2] Cfr. PL 60, p. 306. In: Idem, pg. 74.

[3] Cfr. Idem, pg. 74.

[4] Cfr. João Crisóstomo. Discurso 5 sobre o Gênesis, PG 54, PPS. 602-604. In: Idem, pg. 75.

[5] Cfr. Idem, PG 58, pgs. 508-509. In: Idem, pg. 75.

[6] Cfr. Basílio de Cesaréia. Homilia do Evangelho segundo Lucas: Destruirei meus celeiros e construirei maiores e sobre a avareza ou o rico estulto, 1. São Paulo Paulus, 1998, pg. 26.

[7] Cfr. Idem, pg. 36.

[8] Cfr. Idem, pg. 37.

[9] Cfr. Francisco. Mensagem para os 75 anos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), 16 de outubro de 2020. In: CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil / Campanha da Fraternidade 2023. Texto-Base, pgs. 14-15.

[10] Cfr. Omelia in tempo di fame, PG 31,322s. In:  Giordano Frosini. Il pensiero sociale dei Padri. Brescia, Queriniana, 1996, pg. 35.

[11] Cfr. Idem, pg. 35

[12] Cfr. São Gregório de Nazianzo. Sermão XZIX, O amor aos pobres, 38. In: Os Padres da Igreja e a Questão Social. Petrópolis, RJ, Vozes, 1986, pgs. 62-63.

[13] Cfr. São Gregório de Nissa. Sermão 1. Sobre o amor aos pobres e a beneficência. In: Idem, pgs 26-27.

[14] Cfr. São João Crisóstomo. Sermão pronunciado por ter visto, ao passar pela praça, em tempos de inverno, os indigentes e pobres abandonados e caídos por terra, 1. In: Idem, pg. 65.