por Dom Antônio de Assis Ribeiro
Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belém do Pará
Ninguém pode afirmar com segurança e despreocupação que tem um amigo garantido e ficar tranquilo. Um amigo não é um objeto e a amizade não é um contrato assinado, mas é uma relação viva, sempre atual e condicionada pelo dinamismo de vida dos sujeitos envolvidos e inseridos em contextos variados.
Se afirmamos que a amizade é relação entre dois ou mais sujeitos, então naturalmente, ela precisa de cuidado, atenção, vontade, dedicação, zelo, discernimento conjunto. Por outro lado, nas relações humanas sobretudo, na experiência de amizade, nem tudo depende da simples vontade dos indivíduos. Como já vimos no artigo anterior, há princípios, valores, virtudes e atitudes fundamentais que comprovam a existência da Amizade. Há poucos meses uma jovem já madura, acima dos 25 anos, me disse que ama profundamente o seu namorado, mas ele, apesar de declarar amor com palavras, é ciumento, violento e lhe agrediu diversas vezes deixando-a com hematomas pelo corpo. E me perguntava: Por que isso acontece? Naturalmente lhe respondi que é porque não se amam, vivem uma relação doentia!
O amor não é possessivo, agressivo e nem violento. O amor autêntico não gera dependência deixando o outro vivendo à mercê dos seus impulsos; a amizade não é uma relação por pena de deixar o outro na solidão… isso não é amizade! A amizade é uma qualidade de relação possível somente para pessoas maduras e que querem crescer juntas, e sabem se cuidar! Por isso, uma relação tóxica, fria, sem respeito, nem espírito ético, venenosa e agressiva não está alicerçada no Amor! Nessa situação não pode haver amizade!
- Amizade e vulnerabilidade afetiva
Há muitos fatores que influenciam profundamente a qualidade de uma amizade, que podem contribuir para o seu fortalecimento ou para o seu fim e, muitas vezes, há até a passagem brusca, da amizade para uma terrível e violenta inimizade. A vulnerabilidade da amizade, ou seja, a possibilidade de mudanças, é natural porque está condicionada à instabilidade do comportamento humano. Mas isso não é motivo para o fracasso.
Na relação de amizade há sempre um compromisso de gestão recíproca da relação. Ou seja, o teor da experiência de amizade, depende basicamente da maturidade das pessoas envolvidas, sendo capazes de resolver problemas, conflitos, desentendimentos, frustrações etc. Isso implica o cultivo de muitas virtudes para os envolvidos. Uma séria e madura amizade está sempre alicerçada na rocha de muitas virtudes. Sem a existência de uma teia de virtudes, não conseguimos estabelecer compromissos duradouros com ninguém, seja nas relações de amizade, namoro, noivado, matrimônio, na vida profissional ou em qualquer outro compromisso relacional. Portanto, podemos afirmar que pessoas socioafetivamente imaturas, não são capazes de relações de amizade estáveis e profundas.
Amizade é relação entre sujeitos diferentes, livres, vulneráveis, passíveis de muitas situações imprevisíveis; mas, ao mesmo tempo, a amizade é relação entre pessoas cheias de recursos e, por isso, capazes de sonhar, querer, lutar, crescer, discernir, perseverar em bons propósitos. Um dos fatores que possibilitam a estabilidade de uma amizade é a questão da formação humana. Quem não amadureceu e nem desenvolveu a sua dimensão socioafetiva, dificilmente terá condições de estabelecer estáveis relações de amizade. Pessoas afetivamente imaturas são possessivas, violentas, agressivas, fechadas, autodefensivas, egoístas, interesseiras, ciumentas, intolerantes, oportunistas, desconfiadas, facilmente interpretam mal gestos, atitudes e palavras.
Todavia, a experiência da amizade madura, pressupõe um dinamismo profundamente diferente, rico de conteúdos positivos e promotor da formação recíproca, porque está baseada na abertura, na comunicação, no diálogo, na escuta, no perdão, na compaixão, no respeito, na confiança, na correção mútua, na solidariedade, na corresponsabilidade, na compreensão dos limites do outro.
A experiência da amizade é uma relação entre sujeitos carregados de virtudes, valores, crenças, bem como, de fragilidades, defeitos e tendências negativas. Quem está em busca de um amigo perfeito jamais o encontrará. E mesmo o amigo fiel, não é perfeito!
Dizia o filósofo Blaise Pascal que o ser humano é como um monte de grandezas e misérias. Considerando essa condição, a realização dos nossos bons propósitos, muito dependerá dos nossos investimentos pessoais de força de vontade, de inteligência relacional, de valores que cultivamos, de virtudes nas quais nos treinamos, de reflexão e discernimento nas variadas circunstâncias da vida. Amizade é vida e, por isso, está sempre inserida numa grande variedade de situações.
- A experiência da diversidade
Apesar de constituirmos uma única humanidade, todos os seres humanos são diferentes entre si. A experiência da amizade só é possível porque somos diferentes, essa diversidade possibilita o nosso enriquecimento recíproco. Quem procura uma pessoa igual a si mesma, para ser sua amiga, jamais fará a experiência da amizade. Na verdade, esse é um desejo narcisista que tem como intenção uma relação dominadora, possessiva, exploradora. A pessoa narcisista é alguém profundamente apegada a si mesma, que fica sempre projetando sobre os outros a própria imagem e se impondo sobre elas; esse não é o figurino da amizade autêntica, que é encontro de pessoas diferentes, que se acolhem incondicionalmente, se conhecem, se identificam, divergem, compartilham o que pensam, sentem e vivem; se complementam, se respeitam, se corrigem, se ajudam.
Por outro lado, essa experiência da diversidade também ocasiona a possibilidade do surgimento do conflito, do desentendimento, da frustração nas expectativas pela falta de correspondência. A questão da diversidade humana é ampla; não envolve somente os aspectos físicos, mas diz respeito à dimensão psicológica, afetiva, sexual, mental, religiosa, vocacional, moral, cultural, existencial (experiência de vida) etc. Dessas dimensões ricas de diferenças, temos consequentemente, a diversidade de atitudes e comportamento dos amigos por causa da variedade de crenças, sensibilidades, gostos, interesses, expectativas, modos de entender os valores, convicções religiosas e morais, opções políticas e esportivas, histórias vividas pessoalmente na família e com outros. A experiência da amizade não nega e nem neutraliza aquilo que o outro é (a sua identidade) e nem a sua história.
- Conflito, reconciliação e resiliência
No livro do profeta Jeremias encontramos um versículo muito interessante. Deus manifesta a sua convicção de amor para com o povo lhe dizendo através do profeta: “Eu te amo com amor eterno e te reservo misericórdia” (Jr 31,3). O que mais nos chama atenção nesse versículo não é a declaração de amor eterno de Deus para com o povo, mas é o fato de Deus declarar o seu amor eterno considerando a fragilidade do povo. É por isso que lhe reserva a misericórdia, ou seja, o perdão. O fato de Deus amar o povo, não significa negar sua fragilidade e a possibilidade de erros e traição.
Amar não significa negar os defeitos do outro! Quem faz da pessoa amada um ser perfeito não considerando sua realidade ambivalente, corre o perigo de uma séria frustração. Uma das mais fortes manifestações da fragilidade de uma amizade é o idealismo. A experiência da amizade entre sujeitos perfeitos só acontece na Santíssima Trindade.
Quanto mais idealizamos os nossos amigos mais corremos o perigo de uma grave frustração por causa da excessiva expectativa e do esquecimento de que o outro é profundamente humano e pode errar. Isso não significa reconhecer suas virtudes e admirá-los. Mas é na experiência da sábia e serena gestão do erro do outro, que podemos dar testemunho da grandeza do nosso amor para com ele. Onde há idealismo amistoso, há também perfeccionismo e intolerância. Pessoas assim, não conseguem estabelecer uma relação de amizade, porque amor e perdão caminham juntos.
Uma das mais significativas formas de manifestação de maturidade afetiva entre os amigos é a experiência da resiliência, ou seja, quando os amigos são capazes de sofrer, perdoarem-se, reconciliarem-se e restaurar a experiência da Amizade sem ficarem com mágoas recíprocas. A experiência de amizade longeva e madura é consequência da resiliência. Amigos verdadeiros são capazes de testemunhar o amor entre si através do perdão, da paciência, da delicadeza, da reconciliação. Todavia, quando alguém desconsidera a corresponsabilidade na manutenção da amizade, quando há pertinácia em graves erros com a traição da confiança, a violência, prejuízos econômicos e muitas formas de abusos, o fracasso da amizade é inevitável.
PARA A REFLEXÃO PESSOAL:
- Por que não é bom idealizar os amigos?
- O que é a resiliência relacional?
- Por que não é admissível a “amizade líquida”?
Artigos Anteriores
Dom Antônio : DESAFIOS PARA A PASTORAL JUVENIL: dar atenção à dimensão vocacional (Parte 3)
Introdução Parece que cada vez mais a dimensão vocacional está ficando para segundo plano na vida dos jovens. Diante da fragilidade da atenção ao matrimônio e do descompromisso com opções definitivas de vida, é necessário realçar a sensibilidade para com a...
Dom Antônio: DESAFIOS PARA A PASTORAL JUVENIL:revitalizar a sensibilidade existencial (Parte 2)
Introdução O princípio da encarnação do Filho de Deus, que o fez assumir a totalidade da realidade humana, nos convoca a refletir sobre a exigência de uma pastoral juvenil profundamente encarnada no mundo dos jovens. Quando pensamos na vida dos jovens, não...
Dom Antônio de Assis: Aprofundar a identidade da Pastoral Juvenil (Parte 1)
A partir da lista dos desafios apresentados no artigo anterior, iniciemos a aprofundar o primeiro grande desafio para a Pastoral Juvenil, refletindo sobre o que isso significa. O que implica a pastoral juvenil? De quais realidades e meios de hoje não podemos...
DOM ANTÔNIO ASSIS: GRANDES DESAFIOS PARA A PASTORAL JUVENIL
Introdução Em todas as dimensões e áreas da vida pastoral da Igreja encontramos grandes desafios. Isso significa que o processo de evangelização não é gratuito. O ato de semear a Palavra de Deus exige esforço do evangelizador para conhecer a realidade em que trabalha,...
Dom Antônio Assis: EUCARISTIA E COMPROMISSO DE VIDA
Introdução Celebrando solenemente a Festa de Corpus Christi somos convidados a aprofundar o sentido e as consequências do Sacramento da Eucaristia em nossa vida. Para sermos mais estimulados consideremos as preocupações do apóstolo Paulo presentes na primeira...
IGREJA NA AMAZÔNIA – 1972: ENCARNAÇÃO NA REALIDADE E EVANGELIZAÇÃO LIBERTADORA
Por Dom Antônio Assis Bispo de Belém Introdução De 06-09 de maio de 2022 aconteceu em Santarém o IV Encontro da Igreja Católica na Amazônia Legal, para a celebração dos 50 anos do Encontro dos bispos da Amazônia acontecido na mesma cidade de 24-30 de maio de 1972. Ao...
DOM ANTÔNIO ASSIS: O ESPÍRITO SANTO DEFENDE, EDUCA, REJUVENESCE A IGREJA
Introdução A celebração da Solenidade de Pentecostes nos estimula a revisitar e meditar o mistério da identidade do Espírito Santo e sua missão. É Ele quem impulsiona a Igreja e a mantém em permanente estado de missão para ir ao encontro das Galileias nos tempos...
DOM ANTÔNIO ASSIS: PASTORAL JUVENIL E SINODALIDADE.
Introdução O tema sinodalidade tem sido objeto de constante e de mais intensa reflexão nos últimos anos. Na Constituição Apostólica Episcopalis Communio o Papa Francisco afirma que Cristo fala através de todo o povo de Deus, na totalidade dos fiéis, que receberam a...
DOM ANTÔNIO ASSIS: A EDUCAÇÃO CATÓLICA E PREVENTIVIDADE (Parte 20 – Final)
Introdução O conceito de “educação preventiva” foi gestado a partir da reflexão crítica sobre muitos dramas humanos começando na Europa. No final do século XIX havia de modo geral em alguns países europeus uma grande preocupação para com a assimilação de lições...
DOM ANTÔNIO ASSIS: a educação católica no ensino superior (Parte 19).
A EDUCAÇÃO CATÓLICA NO ENSINO SUPERIOR (Parte 19) Introdução O perfil do Ensino Superior Católico está vinculado ao conceito de educação que a Igreja traz consigo, focado na dignidade da pessoa, na ciência em prol do desenvolvimento humano integral, inspirado nas...
Dom Antônio: Educação Católica: A DIMENSÃO ÉTICA DA EDUCAÇÃO CATÓLICA (Parte 18)
Introdução A identidade da educação católica traz consigo um modo próprio de se expressar; uma das suas mais profundas características é a dimensão ética. Na verdade, há uma natural relação entre educação e ética porque o desenvolvimento humano pressupõe...
Dom Antônio: Educação Católica: A ESCOLA CATÓLICA E A PROMOÇÃO DAS SADIAS RELAÇÕES HUMANAS (Parte 17)
Introdução O contexto sociocultural em que vivemos desafia profundamente a educação católica para que não perca o seu fervor, brilho e identidade. O forte pessimismo nas múltiplas dimensões da vida pessoal e da sociedade constituem grandes desafios a serem...
Dom Antônio: Educação Católica: O Pacto Educativo Global e o impacto social da educação (Parte 16)
Introdução Continuemos a nossa reflexão sobre o Pacto Educativo Global proposto pelo Papa Francisco. Esse desafio nos estimula a aprofundar a dimensão social da educação que brota da consciência da missão de promoção do Reino de Deus. A educação católica tem um...
Dom Antônio: Educação Católica: o Pacto Educativo Global e seus horizontes (Parte 15)
Introdução A Igreja, desde a sua fundação, sempre se mostrou muito sensível para com a educação. O ser humano é vocacionado, ou seja, chamado ao desenvolvimento integral e sem a promoção da educação, isso não é possível. A Igreja é educadora e sempre...
DOM ANTÔNIO ASSIS:EDUCAÇÃO CATÓLICA: Educar para o humanismo solidário (Parte 14)
Introdução Continuemos a nossa reflexão sobre o documento “Educar para o humanismo solidário”. Recordemos as principais ideias apresentadas anteriormente para podermos assim, continuar a reflexão sobre o referido texto. A base inspiradora desse documento é a...
DOM ANTÔNIO ASSIS:EDUCAÇÃO CATÓLICA: Educar para o humanismo solidário (Parte 13)
Introdução Em 2017, por ocasião da celebração dos 50 anos da encíclica Populorum Progressio (PP), sobre o desenvolvimento humano dos povos, escrita pelo Papa Paulo VI em 1967, a Congregação para a Educação Católica lançou um documento com o título...
DOM ANTÔNIO ASSIS: EDUCAÇÃO CATÓLICA: O educador, Bom Pastor dos seus educandos (Parte 12)
Introdução Encontramos na Sagrada Escritura uma abundância de referências sobre a figura do pastor e das ovelhas. A economia dos povos da bíblia era baseada na agricultura e na pecuária. Daí se entende a abundância de referências à figura das ovelhas,...
DOM ANTÔNIO ASSIS: EDUCAÇÃO CATÓLICA: Fraternidade e Educação – Texto Base Agir (Parte 11
Introdução A terceira parte do texto-base da Campanha da Fraternidade nos estimula a traduzir em ações concretas as provocações da realidade contida na primeira parte (o Ver) e as inspirações presentes no discernir (II parte). Por se tratar de uma realidade...
DOM ANTÔNIO ASSIS: FRATERNIDADE E EDUCAÇÃO: Texto Base – Discernir (Parte 10)
Introdução O exercício da escuta é importante para a tomada de decisões em nossa vida. Mas para que o discernimento seja seguro, precisamos ser formados, pois a formação nos proporciona a assimilação de critérios e parâmetros que nos possibilitam analisar com...
DOM ANTÔNIO ASSIS: CAMPANHA DA FRATERNIDADE 2022 “Fala com sabedoria, ensina com amor” (Parte 9)
Introdução Estamos iniciando mais um tempo quaresmal e, com ele, somos chamados a promover a Campanha da Fraternidade (CF). O tempo quaresmal nos estimula à conversão, à melhoria de nós mesmos, e isso não é possível sem revermos a qualidade da nossa relação com os...