por Dom Antônio de Assis Ribeiro
Bispo Auxiliar na Arquidiocese de Belém do Pará
Introdução
Na conclusão de cada ano e início do outro costumamos nos desejar um feliz e próspero Ano Novo. É um rito do qual todos participamos e, sobretudo, desejamos todo bem possível às pessoas que mais amamos, em geral, nossos parentes e amigos. Por mais que o ano que esteja passando tenha sido profundamente marcado por desgraças e sofrimentos, nossa mente não se detém no passado.
Essa é uma característica muito significativa da pessoa humana que deve ser refletida e aprofundada. O final de cada ano é um gatilho que nos desperta para a esperança, que nos faz olhar para o futuro com visão otimista. Essa mirada para frente, em geral, está carregada de espírito de confiança em Deus, mesmo por parte daqueles que não frequentam nenhuma religião. Por isso desejamo-nos bênçãos dos céus, saúde, paz, proteção, sucesso, prosperidade! Somos chamados a aprofundar a beleza desse dinamismo humano.
- O homem voltado para o futuro
Escrevendo aos Colossenses, São Paulo os exorta a buscar e a pensar nas coisas do alto (cf. Cl 3,1-2); a sabedoria que vem do alto nos livra do imanentismo terreno e do materialismo estéril e passional (cf. Tg 3,15-16). Assim, verdadeiramente livres, caminhamos retamente rumo ao futuro por excelência que é a vida eterna (cf. Lc 18,30). Somos vocacionados a desfrutar das maravilhas do mundo futuro (cf. Hb 6,5). Portanto, a visão de futuro nos ajuda a dar sentido para o presente.
Essa realidade faz parte da essência do ser humano porque é dotado de espírito, inteligência, vontade, consciência e liberdade. Essas capacidades colocam o ser humano numa tríplice perspectiva: a memória do passado, a consciência do presente e a previsão do futuro.
A imortalidade da alma, alimenta continuamente no ser humano o desejo de eternidade, de plenitude, de vida eterna, de saciedade. Por sua natureza a alma é inquieta e por isso, provoca o ser humano a não ser acomodado, estático e aprisionado em sua realidade. Todavia, essa natural sede de infinito e plenitude presente no coração do ser humano, choca-se profundamente com a triste realidade em que vivem milhões de pessoas: encarceradas pela apatia, desmotivadas pelo medo, estacionadas no comodismo, dependentes!
Passando pelas grandes cidades do nosso país e do mundo em geral, constatamos uma triste realidade: milhares de moradores de rua; uma realidade de miséria assustadora; muitos em situação de vulnerabilidade socioeconômica sem trabalho, sem dinheiro, sem saúde, sem morada e, por isso, vivendo na rua; outros milhares quase na mesma situação, mas com um sério agravante, os vícios profundos com grave miopia sobre o sentido da vida, da esperança e sem forças de vontade para sair daquela situação. Também eles, apesar de combalidos pela miséria, sonham… No entanto, estão voltados para o presente em busca das suas necessidades básicas imediatas de comer, beber e dormir.
A visão desse drama nos deixa inquietos, provocados, questionados, sensíveis. Isso significa que quando o outro está na miséria perdendo o brilho da sua dignidade, sua situação existencial nos convoca à reflexão e ação. Somos chamados a fazer todo o possível para que o outro jamais perca a capacidade de sonhar e amar a vida. A desumanização do ser humano é um drama para com o qual não devemos nos acostumar. Quem dá esmola e não se deixa tocar pelo clamor das necessidades e dignidade da pessoa que pede, não contribui para a superação da sua miséria. O outro deve ser visto, acolhido, tratado e desafiado como sujeito. O costume da mendicância é negação da subjetividade sadia. Isso acontece quando a situação da mendicância atinge a mentalidade da pessoa.
Num mundo marcado pelo individualismo, fragmentação e heroísmo solitário, um dos grandes desafios é a promoção do sonho coletivo, do sonho sinodal, da ação conjunta, da corresponsabilidade, da comunhão naquilo que é essencial tanto para a sociedade, quanto para a Igreja.
- Somos capazes de sonhar
Apesar das muitas formas de negação do dinamismo do futuro presente no ser humano. Ele, graças às suas extraordinárias capacidades naturais, é o único ser vivo capaz de idealizar, sonhar, projetar, planejar… por isso, está aberto para a promoção do inédito. Esse aspecto tão significativo do dinamismo do ser humano nos fala do seu Criador, a fonte de toda novidade, bondade e beleza. Por isso jamais o ser humano deveria deixar de sonhar!
Todavia, segundo o filósofo francês Jean François Lyotard (1972), a grande característica dos tempos atuais é o fim das “metanarrativas”, ou seja, dos grandes sonhos da humanidade; segundo ele hoje estamos vivendo na era da ausência das grandes utopias, dos grandes sonhos da humanidade; a pós-modernidade é a era da crise dos grandes sonhos. Isso é antes de tudo, uma questão puramente acadêmica. Na verdade, o ser humano nunca deixou e nem deixará de sonhar, mas os sonhos mudam, se redimensionam e sonhos geram sonhos, ou seja, novos ideais e metas. É verdade que onde há ausência de sonhos ali há inércia, incerteza, insegurança, desorientação, ausência de norte, pessimismo. Quando deixamos de crer, sonhar e caminhar perdemos o nosso equilíbrio existencial.
Iniciando um novo ano somos chamados pela fé e inatural inquietude da razão, a olhar para o futuro na perspectiva da responsabilidade pessoal; se somos capazes de idealizar, projetar, programar e executar atividades, isso significa que também nós somos livres e responsáveis pelo nosso presente e futuro. Essa convicção é muito importante porque nos livra do mal de nos deixarmos aprisionar por uma atitude fatalista e determinista da vida.
O fatalismo nega a beleza da subjetividade humana porque defende que na história tudo já está destinado e determinado a acontecer. Nessa visão o ser humano é um mero instrumento de uma engrenagem com movimentos inevitáveis. Esse modo de pensar gera o conformismo que tanto promove o atraso humano porque alimenta nas pessoas o sentimento de impotência diante dos desafios da realidade. Por isso, quase sempre, lá onde há uma mentalidade fatalista, determinista, há pessimismo, miséria, forte crença na sorte, no azar e passiva espera por milagres.
- A necessidade de projetar
Na verdade, apesar das crises, sempre presentes em todas as eras, o ser humano nunca perdeu a inteligência, a sua vontade, liberdade e tensão para o futuro porque essas são características profundamente humanas. Isso significa também que nunca o ser humano perdeu a capacidade de querer, sonhar e buscar o melhor para si e para os outros (família, amigos, grupo).
A nossa capacidade de querer nos lança o desafio e o compromisso da projeção. Não basta sonhar e querer, é preciso inquietar-se, pensar, articular, programar-se. Quem não faz isso fica somente em suas fantasias. Isso acontece quando se deseja algo, mas a pessoa não se preocupa com o “como”, não se programa, não se organiza, não tem sensibilidade estratégica. Assim, não cresce, não amadurece, não evolui! Não basta desejar, é preciso dar trabalho para a inteligência, comprometer a vontade, articular passos estratégicos, percorrer etapas, encher-se de firmeza de ânimo para superar obstáculos. Nada vem de “mão beijada”.
Iniciando um novo ano somos todos convidados a nos reprojetar, a nos autoavaliar, a reconhecer nossas necessidades presentes e erguer a cabeça olhando para as perspectivas do futuro. Para isso é preciso superar alguns males como o pessimismo, o medo, a visão determinista da vida (não existe destino), o derrotismo, a mentalidade mendicante (aquela que nos leva simplesmente a viver dependendo dos outros), a preguiça, o desânimo diante das dificuldades. É preciso cultivar esperança, mas sendo projetada como aquela atitude do bom agricultor que sabe o que plantou e espera ansiosamente a colheita.
A esperança é antes de tudo uma virtude! É uma força interior que nos faz querer e promover o bem; é dom de Deus que se junta com o dinamismo da razão. A inteligência nos convida à esperança. A esperança é uma virtude capital geradora de outras virtudes!
Há situações em que a nossa esperança é profundamente provada, assim como vemos em Jó que, desprezado, doente, incompreendido, sendo objeto de zombaria e solitário, afirmava que sua esperança tinha chegado ao fim e se questionava: “Onde está a minha esperança? Alguém viu a minha esperança por aí? Ela descerá comigo ao túmulo, quando juntos nos afundarmos no pó» (Jó 17,15-16). Em outra passagem sentindo-se desonrado e ferido, desprezado e injustiçado, afirma que lhe fora arrancada a “árvore da sua esperança” que, neste caso, seria a solidariedade dos amigos (cf. Jo 19,12-17). De fato, entre solidariedade e esperança há uma profunda relação. Por isso, para quem tem fé, Deus é o eterno companheiro e essa presença invisível, é confortante. Isso nos diz também que o sonho de boas realizações no futuro nos lança o desafio de abertura ao outro fazendo crescer o próprio capital social.
A fonte e a meta da nossa esperança é Deus. Disso nos vem a atitude de alegria, confiança, entrega, serenidade, otimismo, entusiasmo, firmeza de ânimo, vontade de lutar, desejo de vitória; a esperança é dinâmica! Por ser uma virtude a esperança precisa ser alimentada através da Palavra de Deus que nutre a fé, do bom senso, da oração pessoal, da meditação, da renovação dos bons propósitos.
PARA A REFLEXÃO PESSOAL:
- Como você reflete a questão da esperança no mundo de hoje?
- O que acha da promoção do sonho coletivo e sinodal na sociedade e na Igreja?
- O que podemos fazer para evitar a mentalidade fatalista e mendicante?
Artigos Anteriores
DOM ANTÔNIO ASSIS: a educação católica no ensino superior (Parte 19).
A EDUCAÇÃO CATÓLICA NO ENSINO SUPERIOR (Parte 19) Introdução O perfil do Ensino Superior Católico está vinculado ao conceito de educação que a Igreja traz consigo, focado na dignidade da pessoa, na ciência em prol do desenvolvimento humano integral, inspirado nas...
Dom Antônio: Educação Católica: A DIMENSÃO ÉTICA DA EDUCAÇÃO CATÓLICA (Parte 18)
Introdução A identidade da educação católica traz consigo um modo próprio de se expressar; uma das suas mais profundas características é a dimensão ética. Na verdade, há uma natural relação entre educação e ética porque o desenvolvimento humano pressupõe...
Dom Antônio: Educação Católica: A ESCOLA CATÓLICA E A PROMOÇÃO DAS SADIAS RELAÇÕES HUMANAS (Parte 17)
Introdução O contexto sociocultural em que vivemos desafia profundamente a educação católica para que não perca o seu fervor, brilho e identidade. O forte pessimismo nas múltiplas dimensões da vida pessoal e da sociedade constituem grandes desafios a serem...
Dom Antônio: Educação Católica: O Pacto Educativo Global e o impacto social da educação (Parte 16)
Introdução Continuemos a nossa reflexão sobre o Pacto Educativo Global proposto pelo Papa Francisco. Esse desafio nos estimula a aprofundar a dimensão social da educação que brota da consciência da missão de promoção do Reino de Deus. A educação católica tem um...
Dom Antônio: Educação Católica: o Pacto Educativo Global e seus horizontes (Parte 15)
Introdução A Igreja, desde a sua fundação, sempre se mostrou muito sensível para com a educação. O ser humano é vocacionado, ou seja, chamado ao desenvolvimento integral e sem a promoção da educação, isso não é possível. A Igreja é educadora e sempre...
DOM ANTÔNIO ASSIS:EDUCAÇÃO CATÓLICA: Educar para o humanismo solidário (Parte 14)
Introdução Continuemos a nossa reflexão sobre o documento “Educar para o humanismo solidário”. Recordemos as principais ideias apresentadas anteriormente para podermos assim, continuar a reflexão sobre o referido texto. A base inspiradora desse documento é a...
DOM ANTÔNIO ASSIS:EDUCAÇÃO CATÓLICA: Educar para o humanismo solidário (Parte 13)
Introdução Em 2017, por ocasião da celebração dos 50 anos da encíclica Populorum Progressio (PP), sobre o desenvolvimento humano dos povos, escrita pelo Papa Paulo VI em 1967, a Congregação para a Educação Católica lançou um documento com o título...
DOM ANTÔNIO ASSIS: EDUCAÇÃO CATÓLICA: O educador, Bom Pastor dos seus educandos (Parte 12)
Introdução Encontramos na Sagrada Escritura uma abundância de referências sobre a figura do pastor e das ovelhas. A economia dos povos da bíblia era baseada na agricultura e na pecuária. Daí se entende a abundância de referências à figura das ovelhas,...
DOM ANTÔNIO ASSIS: EDUCAÇÃO CATÓLICA: Fraternidade e Educação – Texto Base Agir (Parte 11
Introdução A terceira parte do texto-base da Campanha da Fraternidade nos estimula a traduzir em ações concretas as provocações da realidade contida na primeira parte (o Ver) e as inspirações presentes no discernir (II parte). Por se tratar de uma realidade...
DOM ANTÔNIO ASSIS: FRATERNIDADE E EDUCAÇÃO: Texto Base – Discernir (Parte 10)
Introdução O exercício da escuta é importante para a tomada de decisões em nossa vida. Mas para que o discernimento seja seguro, precisamos ser formados, pois a formação nos proporciona a assimilação de critérios e parâmetros que nos possibilitam analisar com...
DOM ANTÔNIO ASSIS: CAMPANHA DA FRATERNIDADE 2022 “Fala com sabedoria, ensina com amor” (Parte 9)
Introdução Estamos iniciando mais um tempo quaresmal e, com ele, somos chamados a promover a Campanha da Fraternidade (CF). O tempo quaresmal nos estimula à conversão, à melhoria de nós mesmos, e isso não é possível sem revermos a qualidade da nossa relação com os...
DOM ANTÔNIO ASSIS: Educação católica – Fundamento Cristológico. Jesus educador, por excelência (Parte 8).
Introdução Continuemos nossa reflexão sobre a identidade da educação católica centrando o nosso olhar sobre a pessoa de Jesus Cristo. O fundamento cristológico é determinante para a educação católica, porque Jesus Cristo é a pedra angular, o Mestre e o Senhor...
DOM ANTÔNIO ASSIS – EDUCAÇÃO CATÓLICA: fundamento bíblico, a contribuição dos profetas (Parte 7)
Introdução Foi muito significativa a contribuição dos profetas para a saúde religiosa, moral e política do povo de Israel. Eles foram profundamente sensíveis aos temas sociais; não só denunciaram problemas, mas foram propositivos nos ensinamentos, alertando,...
DOM ANTÔNIO ASSIS: Educação católica – Fundamento bíblico (parte 6).
Introdução A concepção de educação do ponto de vista bíblico depende do período histórico, do contexto sociocultural e de sujeitos específicos considerando suas responsabilidades. Há uma profunda relação entre a consciência de fé, com seus múltiplos...
DOM ANTÔNIO ASSIS – Educação católica: fundamento ético e antropológico (parte 5).
Introdução Para que possamos compreender a sensibilidade da Igreja Católica para com o mundo da educação precisamos mergulhar no universo da identidade do ser humano: quem é o homem, qual é a sua origem, qual é a sua vocação, em que consiste a sua dignidade, qual é a...
DOM ANTÔNIO ASSIS – Educação católica: princípios de fidelidade da educação católica (parte 4).
EDUCAÇÃO CATÓLICA: PRINCÍPIOS DE FIDELIDADE DA EDUCAÇÃO CATÓLICA (Parte 4) Introdução A Igreja Católica se interessa pela educação porque ela faz parte do processo de evangelização. Como já refletimos no primeiro artigo desta série, não existe profunda evangelização...
Dom Antônio Assis- Educação Católica: a identidade do educador (Parte 3)
Educação Católica: a identidade do educador (Parte 3) Introdução Refletindo sobre o binômio inseparável “evangelização e educação” nos deparamos com sérias consequências que devem caracterizar a educação católica. Sem esse cuidado não seremos capazes de...
Dom Antônio Assis: “Evangelizar educando e educar evangelizando – um binômio inseparável” (Parte 2).
"Evangelizar educando e educar evangelizando": um binômio inseparável (Parte 2) Introdução Continuemos a nossa reflexão sobre a relação entre Evangelização e Educação. Na primeira reflexão apresentamos a justificativa pela qual a Igreja se interessa pela...
Dom Antônio Assis: EVANGELIZAÇÃO E EDUCAÇÃO Parte 1
EVANGELIZAÇÃO E EDUCAÇÃO - Parte 1 Introdução Neste ano a Igreja do Brasil é chamada a renovar a sua atenção para com a educação. Temos dois fortes motivos que nos convidam a essa atitude. De um lado, temos a Campanha da Fraternidade deste ano que terá como...
Dom Antônio Assis: A importância da Cultura Projetual
A importância da Cultura Projetual Introdução Chegando ao final de mais um ano e ao nos aproximarmos de outro, reflitamos juntos sobre o tempo. Corremos o risco de pensar que o "tempo" é uma realidade concreta, objetiva, material da qual podemos dispor e...