AMIZADE NA BÍBLIA: ALGUNS CASOS (Parte 7)

por Dom Antônio de Assis Ribeiro

Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belém do Pará

Na Bíblia encontramos muitas narrações profundamente significativas sobre a experiência da amizade. As relações de afeto entre duas ou mais pessoas nem sempre, porém, são marcadas pela positividade moral. Os sujeitos envolvidos (amigos e amigas) pertencem a uma variedade de categorias de pessoas, indicando assim, que a amizade é um fenômeno profundamente humano­­­.

As narrações também têm diversidade de conteúdos e, em alguns casos, apresenta a amizade como uma experiência ambivalente: há bons amigos profundamente virtuosos e outros com atitudes sem referências éticas causadores de maldade. Independentemente dos contextos e dos sujeitos envolvidos, os textos sempre nos sugerem valiosas reflexões sobre as diversas dimensões da amizade.

  1. Um amigo é pessoa de confiança e fidelidade

No livro do Gênesis encontramos o relato sobre a afeição de egípcio Putifar, ministro e chefe da guarda do Faraó, para com José que tinha sido vendido por seus irmãos. Putifar foi quem comprou José dos Ismaelitas, que foi levado para a sua casa. Vendo que com José tudo prosperava, Putifar, tomado por uma grande afeição para com ele, o colocou a seu serviço pessoal e fez dele seu administrador, confiando-lhe tudo o que possuía (cf. Gn 9,1-6). Passado algum tempo, a mulher do ministro se apaixonou por José e tentou insistentemente seduzi-lo para que dormisse com ele, todavia, em consideração ao seu amigo, por sua confiança e amizade, para evitar um crime e também para não pecar contra Deus, José resistiu as provocações (cf. Gn 9,7-15).

A narração ressalta o perfil virtuoso de José, capaz de dar provas de sincera amizade, lealdade, confiança e respeito para com o seu amigo. O texto também coloca em evidência a importância da espiritualidade na promoção da reta consciência da pessoa de um amigo. A qualidade de uma amizade também depende do senso de fé de ambos. Deus é fiel e justo em seu amor (cf. Dt 32,4).  

  1. O amigo defende, protege e pacifica

Notória é a narração da amizade entre Davi e Jônatas, filho de Saul; tomando conhecimento do ódio que seu pai nutria para com Davi seu grande amigo, lhe confidenciou que seu pai tinha a intenção de matá-lo, então pediu-lhe para que se escondesse num lugar seguro e manteve Davi informado dos passos do seu inimigo (cf. 1Sam 19,1-3). Jônatas falou bem de Davi a seu pai Saul que o convenceu para que não lhe fizesse mal algum e Saul desistiu do seu plano maldoso e foi restaurada a paz entre eles (cf.1Sam 19,4-7). Com a morte de Jônatas, Davi declarou o quanto que a amizade dele lhe era importante: “Jônatas, sua morte rasgou-me o coração! Como sofro por você, Jônatas, meu irmão! Como eu lhe queria bem! Para mim, o seu amor era mais caro do que o amor das mulheres!” (2Sam 1,25-27).

Uma das mais significativas características da autêntica e sadia amizade é o compromisso recíproco de defesa e promoção da vida integral um do outro. É interessante que Jônatas não somente protege seu amigo Davi, mas também se esforça para que o conflito desapareça. É muito sugestiva a sensibilidade preventiva, o compromisso de pacificação e a articulação da proteção de Jônatas para com seu amigo Davi.

Muitas vezes na sociedade, há amigos que se tornam imediatamente inimigos dos inimigos do amigo. Aqui temos o contrário! O verdadeiro amigo não deve se preocupar em eliminar inimigos do amigo, mas transformá-los em aliados, promovendo a paz entre eles. Em Jônatas temos um maravilhoso exemplo de Amizade Social. Os amigos verdadeiros são amantes da Paz. Diz o ditado popular que “os inimigos dos meus amigos, são meus inimigos”; Jônatas nos estimula pensar diferente! Não basta a pura defesa do amigo, é preciso quanto possível, eliminar as ameaças de violência e morte.

  1. O mau amigo articula desgraças

Ainda no segundo livro de Samuel está a narração de um crime sexual cometido por Amnon, filho mais velho de Davi; Amnon ficou apaixonado por sua própria irmã chamada Tamar e, não sabendo como satisfazer seus desejos venéreos, recorreu a Jonadab, seu primo e grande amigo que se encarregou de articular o crime sexual contra Tamar (cf. 2Sam 13,1-14).

Nem sempre o afeto humano está voltado para o bem, de modo que a experiência da amizade muitas vezes pode estar desvinculada do amor e da justiça. Muitas vezes, na base da criminalidade organizada está a amizade.

 Os amigos são chamados a serem não somente honestos entre si, mas também amantes da verdade e da justiça, pois “amor e verdade se encontram; justiça e paz se abraçam” (Sl 85,10). Onde a amizade está desconectada da prática da justiça temos amigos promotores do mal que se tornam comparsas de crimes. Esse fato confirma a advertência de São Paulo: “Não se deixem iludir: as más companhias corrompem os bons costumes” (1Cor 15,33). O mau amigo articula desgraças.

 

  1. Amigo é presença confortante

No livro dos Juízes encontramos a triste narração da impulsiva atitude de Jefté, que prometeu a Deus oferecer em holocausto, a primeira pessoa que viesse ao seu encontro se saísse vitorioso da guerra contra os Amonitas; estes foram derrotados e Jefté voltou para a sua casa em Masfa. A primeira pessoa que veio para recebê-lo foi justamente sua única filha. Jefté lamentou profundamente! Mas sua filha não se opôs à promessa do pai, todavia, lhe pediu para estar por dois meses chorando sobre os montes com suas amigas porque ia morrer virgem (cf. Jz 11,1-40).

É uma narração dramática que evidencia a amizade como experiência de conforto, consolo, alívio na dor, solidariedade. O contrário encontramos na história de Jó. Ele ficou indignado com seus amigos porque, apesar de estarem presentes em sua vida, suas atitudes não lhe traziam consolo, nem conforto, mas pesar que aumentava seu sofrimento, por isso, já não aguentando mais reclama o excessos de discursos sem esperança, acusações, ilusões e a carência de solidariedade, sentindo-se frustrados com a presença deles (cf. Jó 6,14-21). Não suportando mais a presença incômoda dos seus amigos lhes diz com pesar:  “Piedade, piedade de mim, meus amigos, pois a mão de Deus me feriu! Por que me perseguis como Deus, e não vos cansais de me torturar?” (Jó 19,21-22). Diante do drama de um amigo, quando não temos solução para aquela situação, o que mais vale é ser presença.

Um exemplo muito significativo de presença consoladora e confortante que faz a diferença na vida do outro, está na história de Rute e sua sogra Noemi que era viúva… Após a morte dos seus dois filhos Noemi ficou sozinha com suas duas noras. Orfa, esposa de um dos seus filhos, decidiu voltar para o seu povo; Rute, porém, lhe permaneceu fiel e lhe declarou: “eu fico contigo; teu povo é o meu povo; teu Deus é o meu Deus; onde tu fores eu irei, onde tu morreres eu também morrerei, onde fores sepultada eu também serei sepultada” (Rt 1,16-17). A amizade entre Rute e Noemi é marcada pela presença delicada, solidária, protetora, cuidadosa.

Enfim, recordemos ainda que ao pé da cruz de Jesus, em situação de total impotência, estavam fielmente e em silêncio dois amigos de Jesus: Maria Madalena e João (cf. Jo 19,25-27). (A reflexão continua).

PARA A REFLEXÃO PESSOAL:

  1. Qual dos textos mais lhe chamou a atenção?
  2. Por que Jó se sentia incomodado por seus amigos?
  3. No contexto da amizade, o que significa a presença de Madalena e João (o discípulo amado) ao pé da Cruz?

Artigos Anteriores

A LIDERANÇA NO TESTAMENTO ÉTICO-PASTORAL DE SÃO PAULO (Parte 17)

Dom Antonio de Assis Ribeiro, SDB Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belém  Introdução Antes de concluir esta série de reflexões sobre liderança pastoral, quero lhe convidar a fazer uma leitura orante do testamento ético e pastoral de Paulo. Esse texto se encontra em...

AMOR E VERDADE NA COMUNICAÇÃO

Dom Antonio de Assis Ribeiro Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belém Todos os anos a Igreja Católica dedica uma jornada de reflexão sobre as Comunicações Sociais que acontece no IV domingo do mês de maio, e tem um tema específico cada ano comentado numa mensagem do...

PECADOS CAPITAIS DA LIDERANÇA (Parte 16)

Dom Antonio de Assis Ribeiro, SDB Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belém Introdução Há vícios que inviabilizam plenamente a possibilidade de uma liderança efetiva e eficaz, tornando-a estéril, amarga, opressora, injusta e assim o líder, às claras se torna “persona...

LÍDER: SEMEADOR DE ESPERANÇA E OTIMISMO (Parte 15)

Dom Antonio de Assis Ribeiro, SDB Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belém LÍDER: SEMEADOR DE ESPERANÇA E OTIMISMO (Parte 15) Introdução: O autêntico líder não é aquele que simplesmente manda, mas sobretudo, é quem alimenta esperança e nutre o otimismo nos seus...

LIDERANÇA E SENSIBILIDADE HISTÓRICA (Parte 14)

Dom Antonio de Assis Ribeiro, SDB Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belém Introdução Em muitas ocasiões tenho encontrado, em diversos contextos pastorais, líderes messiânicos, aqueles que manifestam através de suas atitudes que chegaram ilusoriamente para resolver...

ZILDA ARNS: HEROÍNA DA PÁTRIA

Dom Antônio de Assis Ribeiro, SDB Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belém   No dia 20 de abril foi divulgado que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 14.552, que colocou o nome da Dra. Zilda Arns Neumann, médica pediatra, sanitarista e fundadora...

LIDERANÇA E ESPIRITUALIDADE (Parte 12)

Dom Antônio de Assis Ribeiro, SDB Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belém Introdução A exigente missão de liderança proporciona, muitas vezes ao líder, o enfrentamento de sérios desafios e problemas. Se ele não tiver uma forte estrutura espiritual, nessas...

 TERNURA E FIRMEZA NA LIDERANÇA (Parte 11)

Dom Antônio de Assis Ribeiro Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belém Introdução “O bom pastor dá a vida por suas ovelhas. O mercenário, que não é pastor, a quem não pertencem as ovelhas, quando vê o lobo chegar, abandona as ovelhas e sai correndo. Então o lobo ataca e...

A LIDERANÇA ÉTICA (Parte 10)

por Dom Antônio de Assis Ribeiro Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belém Introdução Uma das mais importantes exigências que recai sobre um líder é aquela que diz respeito a sua dimensão ética. Quando Jesus disse aos seus apóstolos: “entre vocês, não deve ser assim....

APROFUNDAMENTO DO SENTIDO DA CELEBRAÇÃO DA PÁSCOA

Dom Antônio de Assis Ribeiro Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belém Na Bíblia a Páscoa aparece pela primeira vez no capítulo doze do livro do Êxodo, dentro do contexto de vida nova, como memória da libertação da escravidão no Egito (cf. Êxodo 1-3). A Páscoa judaica...

LIDERANÇA, INQUIETUDE E VISÃO EMPREENDEDORA (Parte 9)

Dom Antônio de Assis Ribeiro Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belém Introdução O líder tem a missão de cuidar das pessoas, estimulá-las, animá-las, promovê-las, envolvê-las, corresponsabilizá-las na missão fomentando a busca de respostas a desafios e problemas....

LIDERANÇA e SINODALIDADE (Parte 8)

Dom Antônio de Assis Ribeiro Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belém Introdução Os líderes da Igreja, em todos os níveis, têm como missão comum a promoção do Reino de Deus. A missão de evangelizar da Igreja tem como meta essa única finalidade; portanto, todos os...

LIDERANÇA E TEOLOGIA DO SERVIÇO (Parte 7)

Dom Antônio de Assis Ribeiro Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belém Introdução Na Igreja, mesmo se não somos todos líderes e com funções de coordenação, somos servidores. Mas liderar os outros é servir. É uma das mais significativas e exigentes formas de serviço...

LIDERANÇA: A SÁBIA HORA DA SUCESSÃO (Parte 6)

Dom Antônio de Assis Ribeiro Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belém Introdução A Sagrada Escritura nos diz que há um tempo para cada coisa. Então é preciso saber discernir o momento certo de cada uma; quando iniciar e também quando terminar. “Debaixo do céu há...

LIDERANÇA E SENSIBILIDADE ESTRATÉGICA (Parte 5)

Dom Antônio de Assis Ribeiro Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belém Introdução A diversidade de desafios a serem administrados por um líder, em qualquer áreas de serviço, lhe exigem algo a mais, além da boa vontade e da generosidade. Para que sua missão seja cumprida...

LIDERANÇA E ESPÍRITO DE INICIATIVA (Parte 4)

Dom Antônio de Assis Ribeiro Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belém Introdução Outro grande desafio que percebemos em nossas paróquias, comunidades, grupos, movimentos e, entre tantas outras, em relação aos líderes, é a questão da carência de espírito de iniciativa....

LIDERANÇA E FORMAÇÃO HUMANA (Parte 3)

Dom Antônio de Assis Ribeiro Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belém Introdução Muitas são as condições necessárias para que haja um bom líder, a primeira delas talvez, seja a formação humana. O líder é gente que trabalha com gente, e por isso, precisa conhecer o ser...

QUAL É A SUA ATITUDE DIANTE DO SOFRIMENTO ALHEIO?

Dom Antônio de Assis Ribeiro Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belém A pandemia da COVID-19 ainda permanece entre nós promovendo centenas de milhares de mortes no Brasil e milhões no mundo; enquanto isso, novos dramas se abatem sobre a humanidade como a guerra na...

CARACTERÍSTICAS E SINAIS DE LIDERANÇA  (Parte 2)

Dom Antônio de Assis Ribeiro Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belém Introdução Parece uma questão desnecessária, mas na verdade, os fatos que contemplamos na sociedade e na vida pastoral da Igreja nos dizem que o conceito de liderança não é bem claro para muitas...

LIDERANÇA: NECESSIDADE E IMPORTÂNCIA (Parte 1)

Dom Antônio de Assis Ribeiro Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belém Introdução Um dos grandes temas pastorais que precisamos estar continuamente refletindo, aprofundando e ressignificando é aquele da “liderança”. Esse assunto não é importante somente para a Igreja,...