EDUCAR PARA A AMIZADE (Parte 13)

por Dom Antônio de Assis Ribeiro
Bispo Auxiliar na Arquidiocese de Belém do Pará

A educação como desenvolvimento humano integral, abraça a promoção da totalidade das dimensões da pessoa humana. Visto que tudo depende da inteligência, o processo de educação integral deve levá-la a permear todas as outras dimensões da pessoa. Portanto, quando a inteligência se volta para a dimensão socioafetiva é capaz de contribuir para a qualidade dos nossos relacionamentos. Dessa forma podemos dizer que a amizade é uma forma de relacionamento inteligente, alicerçado no amor e na razão. Isso acontece mediante um longo processo de aprendizagem. Sem a educação sociofetiva não nos tornamos aptos para a experiência da amizade, porque seremos levados simplesmente pelos nossos impulsos, não nos deixando guiar por valores e assim não sendo capazes de acolher, respeitar e de nos enriquecer com o outro.

  1. Amizade, família e escola

Educar para amizade é um compromisso, em primeiro lugar, da família pois os pais são os primeiros educadores de seus filhos! Os pais como educadores deverão estimular a dilatação da dimensão social e afetiva da prole levando-a a crescer na capacidade de comunicação e aproximação prudente e respeitosa dos outros zelando pelo bom senso.

Não há fórmula para amizade, mas pouco a pouco, crianças bem-educadas na dimensão socioafetiva, fazem um processo de crescimento na confiança, no respeito, na solidariedade e começam a entender, desde cedo, o que significa ser amigo. Amizade não cai do céu, pois é consequência de um processo de conhecimento, afinidade, confiança, partilha de vida. Talvez você bem se recorda da experiência das primeiras amizades desde a infância e, quem sabe, quantos de nós ainda as conservamos.

Além da experiência da família, a escola tem também uma grande responsabilidade para com a promoção do desenvolvimento humano através da educação social, moral e cívica dos seus estudantes. Após a família em geral, a escola é o primeiro núcleo institucional do qual toda criança passa a frequentar e, nesse contexto, toma conhecimento de novas pessoas, autoridades, colegas, regras, e assim, vai ampliando a sua visão de mundo e dilatando a sua afetividade e sociabilidade.

No ambiente escolar desde cedo, a criança vai aprendendo a interagir, a discernir, a perceber com quem tem afinidade e, aos poucos, a tecer a rede da amizade. Em geral, ninguém intervém nesse processo: não são os gestores da escola ou da universidade e nem os professores que definem quem deve ser amigo de alguém; nem os pais acompanham esse processo! Mas é cada educando que desde a mais tenra idade faz essa experiência. Mas é claro que pais e educadores zelosos, sempre apontam critérios e acompanham seus filhos com devidas reflexões a serem assimiladas.

  1. Não à “amizade líquida”

Da mentalidade pós-modernista surgiu o conceito de “amor líquido”, como relacionamento sem forma definida e sem responsabilidade pelo outro, mas esse perfil de relação está longe de ser amistoso. No amor líquido tudo é vulnerável e está submisso aos interesses pessoais, ao prazer sem compromisso recíproco. Por isso, é muito comum constatarmos que casais que vivem esse estilo de relacionamento, passarem pela experiência de profunda solidão, agressividade e tristeza. Mas visto que a autêntica experiência de amor é sempre fonte de alegria, então há algo errado nesse estilo de relacionamento. Não se deve confundir a amizade com a erótica.

Por causa dessa confusão, é necessário que pais zelosos e educadores conscientes continuamente estejam advertindo seus filhos e estudantes para crescerem na capacidade de compreender o que significa a amizade autêntica. A educação socioafetiva é um dos desafios mais delicados no processo de desenvolvimento integral de uma pessoa. A educação socioafetiva liberta a pessoa de ser manipulada pelos outros e, por outro lado, a ajudará a estar apta para ser criteriosa nos seus relacionamentos, sendo capaz de manter-se íntegra, verdadeira, autêntica, solidária, justa, honesta, honrosa, generosa, capaz de respeitar o outro, jamais tratando como objeto dos próprios interesses e fazendo-a instrumento de prazer. Na amizade há uma larga margem para o senso crítico, o discernimento, a discordância, a correção recíproca.

  1. Atitudes inadmissíveis

Dentro desse amplo contexto das características da autêntica amizade, profundamente ancorada na verdade e na justiça, são inadmissíveis algumas atitudes. Quem se submete a elas em nome da amizade, na verdade, vive a experiência de um relacionamento patológico, ou seja, doentio. Isso lamentavelmente é muito comum, não só entre adolescentes e jovens, mas também entre adultos, seja do mesmo sexo entre si, ou casais heterossexuais. O universo das atitudes inadmissíveis no relacionamento de amizade errônea é vasto, mas podemos citar algumas mais comuns, como por exemplo:

– A existência da violência: toda e qualquer forma de agressividade depõe contra o amor, e está longe de ser experiência de amizade; quem agride não ama, quem violenta odeia; nos relacionamentos interpessoais muitas podem ser as formas de violência, como aquela verbal (palavras ofensivas, conceitos injustos, afirmações injuriosas…), física, psicológica (chantagens, ameaças, intimidações…), sexual, cultural, racial, religiosa (pressão proselitista); a intolerância é egoísmo e quem não experimenta o respeito para com a pessoa amada, não sabe o que é amizade;

– A atitude possessiva:  a amizade não deve ser interesseira, mas gratuita, por isso quem tem um amigo deve considerá-lo como um dom de Deus, um tesouro (cf. Ecle 6,14); a atitude possessiva é sinal de imaturidade humana, revela negação da subjetividade do outro; mas quando numa relação a alteridade é suprimida (rejeição das potencialidades e recursos do outro), só resta o “Eu” que se impõe; isso é nega a reciprocidade. Uma das formas mais dolorosas de possessividade é o ciúme; a pessoa ciumenta é insegura, incapaz de estabelecer maduros relacionamentos de amizade e, em vez de acolher o outro como sujeito que possa enriquecer a si mesmo, trata-o como objeto a ser possuído; o ciumento é um egoísta; “amigos ciumentos” são suicidas;

– A falsidade: não há absolutamente o mínimo de espaço para a prática da falsidade na experiência da amizade; a inseparabilidade entre amor e verdade é um princípio bíblico, como bem afirma o Salmista: “amor e verdade se encontram, justiça e paz se abraçam” (Sl 85,11); os amigos devem ser verdadeiros; é uma exigência moral que brota da natureza da amizade; os amigos, portanto, devem ser honestos entre si;

– A quebra de confidência: uma das mais profundas manifestações da maturidade de uma amizade é a experiência da confiança; a confiança é aquela qualidade de relação que possibilita confidência, a abertura do coração, a partilha de questões íntimas como ideias, sentimentos, experiências, inquietudes, sonhos…; tanto aquele que confidencia, como aquele que a recebe estão reciprocamente comprometidos com o sigilo; desse modo, a ruptura da confidencialidade é agressão à dignidade alheia; essa é uma das mais fortes atitudes de violência contra alguém; por isso o confidente deve ser alguém profundamente maduro, sensato, respeitoso, aliás quando alguém nos confidencia algo é porque está nos considerando pessoas adultas e dignas de confiança. Por ser algo tão importante e delicado, a ruptura da confidência de um amigo, em geral, significa o sepultamento da amizade. Mas mesmo que por várias circunstâncias, venha o fim de uma amizade, aquela experiência confidente do passado deverá permanecer aguardada incondicionalmente no coração dos dois. O fim da amizade não nos dá o direito de colocar a público o que o outro nos confidenciou e, dependendo do conteúdo, nem de falar a outros amigos! Isso vale após a morte, pois também a memória do outro é sagrada.

– A negação da solidariedade: enfim, outro fator inadmissível na experiência da amizade é a negação da solidariedade ao amigo. Um dos valores primários da experiência da amizade é o cuidado para com o outro, a sensibilidade, a experiência da partilha, a compaixão, a bondade, a gratuidade, o espírito de iniciativa diante das necessidades do amigo.  Portanto, a solidariedade é uma condição sem a qual não existe amizade. A palavra solidariedade é muito significativa e inspiradora de muitas reflexões, seja a partir da sua etimologia, como também no seu sentido conotativo. Assim, a palavra solidariedade significa dar solidez ao outro, solidificar, soldar, dar coesão, unir… Nesse sentido, a solidariedade dá solidez a nossa identidade, nos fortalece na consciência de nossa dignidade, nos anima! Mas podemos dizer, poeticamente, também que solidariedade é “dar o sol ao outro”; ou seja a presença do bom amigo na vida do outro, lhe traz luz, calor afetivo, alegria, coragem, firmeza de ânimo. A prática da solidariedade sempre acende o sol da esperança nas trevas da vida. Enfim, a palavra solidariedade nos convida também a pensar na necessária presença na vida dos amigos para não os deixar sozinhos na alegria, nas conquistas, nas derrotas, no sofrimento, nas ameaças. Quem tem amigos nunca passa pelo sofrimento da solidão.

PARA A REFLEXÃO PESSOAL:

  1. Por que é importante educar para a amizade?
  2. O que você tem a dizer sobre o papel da família e da escola em relação educação socioafetiva?
  3. O que lhe parece inadmissível na amizade?

Artigos Anteriores

Jesus Cristo e a Promoção da Saúde (Parte 5)

Introdução: Continuemos nossa reflexão olhando para a sensibilidade de Jesus Cristo sobre a saúde. Deus, a fonte da Vida, da libertação e do bem-estar, tem a plenitude da sua revelação na pessoa de Jesus Cristo com sua grande compaixão pela vida.  A comunidade dos...

A pandemia da COVID-19: A saúde, dom e responsabilidade (Parte 4)

Foto: Sebastien Bozon/AFP   Introdução O mundo está doente e os seus recursos técnicos e científicos, como estamos percebendo, não são suficientes. A pandemia da COVID-19 desvelou uma realidade que estava mundialmente oculta: a fragilidade da saúde humana! Os...

O sofrimento na pandemia da COVID-19 e a questão religiosa (parte 3)

Introdução A crise provocada pela pandemia da COVID-19 é um convite incessante à reflexão em muitas dimensões. Neste texto, quero convidá-lo a refletir esse fenômeno a partir da dimensão religiosa. A experiência de fé, na sua autenticidade, qual contribuição pode dar...

Ecos do Sínodo Pan-Amazônico

Concluiu-se no domingo passado, dia 27 em Roma, o Sínodo Pan-Amazônico. Gostaria de apresentar-lhe meu breve testemunho desse evento tão significativo para a Igreja e a sociedade. Enquanto caboclo missionário que já trabalhou nos “quatro cantos” da Amazônia brasileira...

Sínodo Pan-Amazônico: o desafio da profecia do diálogo (Parte 11)

Introdução O Sínodo é um evento eclesial, por isso ao centro das preocupações e processos de reflexão está a evangelização. A missão da igreja é Evangelizar! Isso significa apresentar ao mundo a pessoa de Jesus Cristo, o Salvador da humanidade, para que “todos tenham...

Sínodo Pan-Amazônico: a necessária promoção vocacional (Parte 8)

Introdução A renovação da presença da Igreja Católica na Amazônia passa inevitavelmente pela pastoral vocacional nas suas diversas opções. Esse compromisso é acenado no número 129 do Instrumento Laboris: “promover vocações autóctones de homens e mulheres, como...

Sínodo Pan-Amazônico: os clamores das juventudes amazônicas (Parte 7)

Introdução: Outro tema significante que, seguramente deverá ser objeto de reflexão no Sínodo Pan-Amazônico, é a questão juventude. Na região amazônica está concentrado, proporcionalmente, o maior índice de jovens do Brasil. A população da Amazônia é jovem. Uma das...

Sínodo Pan-Amazônico: importantes atitudes eclesiais (Parte 6)

Introdução: É longa a lista dos problemas humanos presentes na Amazônia. Mas, como já refletimos no artigo precedente, não toca à Igreja resolver os dramas da humanidade. Aliás, é bom recordar que também Jesus e a comunidade primitiva não resolveram os problemas...

Sínodo Pan-Amazônico: a promoção humana e suas exigências (Parte 5)

Introdução: Falamos no artigo anterior sobre a inseparabilidade entre evangelização e promoção humana. Bem como, apresentamos quatro fontes inspiradoras e condicionadoras do agir da Igreja na esfera social. No amplo contexto Amazônico, a relação entre evangelização e...

Sínodo Pan-Amazônico: Riquezas e alegrias da Igreja (Parte 3)

Introdução: Após termos refletido sobre os gritos sócio-ambientais e os clamores eclesiais, falemos um pouco sobre as riquezas e alegrias da Igreja na Amazônia. A diversidade dos contextos sociais, étnicos, históricos, teológicos, pastorais, culturais, políticos,...

Sínodo Pan-Amazônico: Alguns clamores eclesiais internos (Parte 2)

Introdução: Considerando as peculiaridades, beleza, riqueza e potencialidades da Amazônia, em diversas dimensões, ela é lugar de contemplação de Deus! Todavia, como refletimos no artigo anterior, analisando seus muitos problemas humanos e ambientais, a Amazônia é...

A Amazônia como lugar teológico e seus clamores

Introdução: No dia 15 de outubro de 2017, o Papa Francisco anunciou a convocação de um Sínodo Especial para a Pan-Amazônia. Participarão desse Sínodo bispos e peritos que trabalham na grande região Amazônica, além de muitos convidados especiais.       A Pan-Amazônia é...

AMAZÔNIA E CARIDADE: Serviço da Promoção Humana

O bispo auxiliar de Belém, dom Antônio de Assis Ribeiro, participa desde o último dia 07 em Roma, do II Seminário Sul Sínodo Pan-Amazônico. O evento é promovido pela Pontifícia Universidade Salesiana e reúne diversos religiosos e leigos que, nestes dias, aprofundam os...

A PRESENÇA DOS JOVENS NO CÍRIO E NA ROMARIA DA JUVENTUDE

Artigo semanal de Dom Antônio de Assis Ribeiro, Bispo Auxiliar na Arquidiocese de Belém.

TEMA DO CÍRIO 2023: “Maria, sinal de esperança para o povo de Deus em caminho”

Artigo semanal de Dom Antônio de Assis Ribeiro, Bispo Auxiliar na Arquidiocese de Belém.

A SENSIBILIDADE SOCIAL NOS ATOS DOS APÓSTOLOS (Parte 6)

Artigo semanal de Dom Antônio de Assis Ribeiro, Bispo Auxiliar na Arquidiocese de Belém.

BASE CRISTOLÓGICA DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA NA CATEQUESE (Parte 5)

Artigo semanal de Dom Antônio de Assis Ribeiro, Bispo Auxiliar na Arquidiocese de Belém.

FUNDAMENTOS ANTROPOLÓGICOS E ÉTICOS DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA (Parte 3)

Artigo semanal de Dom Antônio de Assis Ribeiro, Bispo Auxiliar na Arquidiocese de Belém.